sexta-feira, novembro 21, 2008

urgente! na Rede Blog: uma matéria sobre o botequim do Assis

Repórter tricolor acompanha um dia de jogo do Botafogo no Assis

Um portão vermelho que já foi de garagem. Pouco mais de 30m2. Chão de cimento emoldurado por quadrados feitos de brita. Uma pilastra fora do centro. Paredes cinzas de chapisco rude. Cartazes com sedutoras modelos. Avisos para não incomodar a vizinhança. Pouca iluminação. Um ventilador de hélices brancas, bastante sujo e sem a grade da frente. Uma TV de 29 polegadas sobre uma prateleira instalada bem perto do forro de PVC branco. Um grande freezer vertical da Itaipava. Mesas e cadeiras vermelhas de plástico. No alto, uma vasta coleção de latas de cerveja. Em um canto bem escondido, um pequeno vaso com uma plantinha um tanto mística conhecida como espada de São Jorge.

Assis me recebeu com um sorriso irônico e uma pergunta pronunciada apenas pelos grandes olhos verdes: o que faz um tricolor aqui no dia em que o Botafogo disputa com o Fluminense a Taça Rio? Sim, sou freqüentador do bar. Jornalista nada isento para esta pauta, portanto. Na visita anterior havia cometido a petulância de entrar no estabelecimento com a camisa do Fluminense também em um jogo contra o Botafogo. Mas desta vez havia me protegido com uma insossa camisa careca azul. Expliquei que estava a trabalho.

Assis é Francisco de Assis Rodrigues, 57 anos, o proprietário do bar. O bar é o Terapia´s, um dos poucos que conservam alguma alma de botequim na cidade de Campos dos Goytacazes, outrora famosa pelas cachaças que fabricava com a farta cana colhida por mãos semi-escravas. E o Botafogo é mesmo o time do Rio, uma espécie de instituição simbólica que sustenta o espírito do bar e, em boa medida, o do próprio Assis.

Dia de folga em local de trabalho

A intenção do repórter é flagrar o bar em seu momento de público mais fiel. Aquele formado pela torcida botafoguense, em dia de jogo do time. A fidelidade foi ainda mais atestada pelos vários motivos que tinham os freqüentadores para não sair de casa. O jogo seria transmitido pela TV Globo — não havia, portanto, necessidade de TV por assinatura, um dos, digamos, serviços do bar — e a tarde era chuvosa em um domingo estacionado antes de um feriadão que emendava Dia de Tiradentes (segunda) e de São Jorge (na quarta-feira). Ainda assim, lá estavam eles, exatamente nove adultos, três crianças e dois adolescentes, na expectativa para o início da partida, às 16h, no Maracanã.

Assis estava sentado em uma mini-torrre formada por quatro cadeiras de plástico empilhadas. Recostava a cabeça de cabelos rareando em uma pilastra muito próxima à TV. Precisava olhar acentuadamente para cima para ver o jogo, lá no alto da parede. O esforço pode ter contribuído para tornar ainda mais avermelhado o seu rosto. Calçava sandálias havaianas de tiras pretas e fundo branco, vestia bermuda jeans e, claro, uma surrada camisa do botafogo.

Quando tem jogo do time alvinegro, para o Assis, mesmo sendo o dono do bar, é dia de folga em local de trabalho. Entre as muitas combinações e cumplicidades necessárias para sustentar um casamento de 20 anos com Dona Ângela, está a de que ele pode ficar do outro lado do balcão quando o Botafogo está em campo. Pode beber, pode gritar, pode virar torcedor como qualquer freguês.

Pacto parecido ocorre também quando, como qualquer ser humano, Assis quer tomar uma cerveja. Embora esteja cercado por 68 caixas delas, geladíssimas em quatro freezers e de várias marcas, o dono do bar prefere relaxar em outro ambiente, e é um dos que, vez por outra, se espremem em um botequim ainda menor que o seu, embora mais tradicional na cidade, que é o Gato Preto, no Centro. É comum que pague mais caro e tome cerveja mais quente.

— Mas é diferente — conta.

Começa o jogo

Apita William de Souza Nery, começa o jogo no Maracanã. A tradicional saudação do locutor esportivo faz prender a respiração no bar. Um pandeiro ainda repousa numa cadeira. E a partida não havia chegado a um minuto quando as primeiras reclamações sobre o juiz foram proclamadas. É que Lúcio Flávio havia mandado a bola para dentro da área, alguém caiu e do fundo do bar veio o grito "pênalti!".

— Cadê o bandeira? — reclamaram outros.

O público não chega a ser um grande exemplo de animação futebolística. Há apenas seis, incluindo o Assis, com a camisa do botafogo. A cota feminina é formada por três freguesas sentadas em volta de uma mesa na calçada, do lado de fora do bar, sem demonstrar muito interesse na partida. Estão próximas a uma faixa onde se lê: "senhores freqüentadores do bar, pedimos não utilizar a calçada do prédio em frente. Agradecemos". A relação de todo botequim é sempre tensa com a vizinhança. E é por isso que o Terapia´s está no atual endereço há três anos, dos 12 de serviços prestados à boemia campista.

Ao lado do balcão revestido de tijolinho e coberto por pedra bege com rajados pretos e marrons, está um quadro com o cardápio da casa. Caldo de ervilha, caldo de feijão, caldo de mocotó, carne seca no feijão, carne seca acebolada, costela com aipim, lingüiça no feijão, lingüiça calabresa e língua com batata. Tudo com porções que variam de R$ 2,50 a R$ 6,00. O que sai mais?

— Depende do dia — desconversa Assis.

Aos sete minutos, alguém grita: "Vai dar cartão!". E o cartão não sai.

Aos oito, outro comenta: "Nota zero para o árbitro".

Aos quatorze, o público havia crescido consideravelmente. Quinze pessoas. Contando com o repórter, que toma uma cerveja Antártica Original encostado no balcão.

Aos 22, o tricolor Thiago Neves lança para a Washington, que domina e é derrubado por Renato Silva. Pênalti para o Fluminense. Mais reclamações contra o juiz. Grande tensão no ar. William de Souza Nery autoriza, Washington corre, bate colocado, desloca o goleiro, na trave! Os botafoguenses comemoram como se tivesse sido um gol alvinegro.

Assis está muito tenso desde o início da partida. Apenas aos 26 manifestou mudanças mais intensas na posição em que se encontrava na sua mini-torre de cadeiras. Relaxou os braços, jogou a cabeça para frente, balançou os pés. É falta perigosa a favor do Fluminense. Outra bola que não entrou. Gestos ainda mais nervosos viria a fazer aos 39 minutos, quando se levantou, girou, estendeu os braços, passou a mão na cabeça, tudo por causa de um quase gol do Botafogo.

Disciplina militar

Uma das características do bar é o modo como Assis e dona Ângela conduzem a disciplina no lugar. Ambos com aspectos militares. Todo esforço é feito para prevenir o inevitável para qualquer botequim: que vez por outra aconteça alguma daquelas típicas confusões que o álcool produz. Há avisos solenes nas paredes, como o que proíbe ligar som automotivo na porta do estabelecimento, ou o que fixa horários rígidos de funcionamento, e há a vigilância constante do casal.

Antes do final do primeiro tempo, por exemplo, um sujeito chegou ao bar em estado de ampla precariedade etílica. Daqueles tipos que vinham tombando botequins. Mesmo enrolado em uma bandeira do Botafogo, ele não era bem vindo ali. Chegou ao balcão, pediu uma cerveja, e dona Ângela, com ar austero, não serviu, além de ter dado um sermão. Deu para notar que é um freqüentador habitual, mas, naquela hora, o limite dele, de acordo com os rigorosos padrões da casa, havia chegado.

Há um esforço deliberado em tornar o Terapia's um botequim diferente dos outros bares de torcida. Os fregueses mais estridentes são sutilmente convidados a reunirem-se em um quiosque próximo, também reduto de botafoguenses. Assis quer progresso nos negócios, mas prioriza a ordem. Pode ser coisa de quem comandava lojas da antiga rede Casas da Banha, no Rio, e da Drogaria Pacheco, também na capital e em Campos. A linha é dura.

Intervalo de jogo e o repórter tem um pouco mais de tempo para observar o que está no lado de dentro do balcão. Enquanto fregueses se levantam, alguns caminhando em direção ao banheiro, outros apenas esticando braços e a coluna, uma anotação frenética de debruça sobre o bloquinho. O lugar tem algo em torno de nove metros quadrados, com temperatura abrandada por um cansado ventilador de teto. No pequeno espaço estão três grandes freezers — dos quatro existentes no bar —, mostruários de biscoitos, amendoins e outros tira-gostos industrializados, além de balas, chocolates e outros doces — que nos momentos de apuro são chamados apenas de glicose. Há paredes cobertas por prateleiras que ostentam mais latas da coleção de cerveja e muitas garrafas de uma coleção ainda mais preciosa, a de cachaças. São dezenas delas, com seus nomes bem-humorados ou de tonalidade regional: Branca Fulô, Barra Velha, Rainha do Vale, Caninha do Engenho, Donzela, Chave de Ouro, Beijo, Marimbondo, Caranguejo, Januária e a jóia das jóias: Terapia´s, uma edição encomendada pelo bar com rótulo da casa.

Há ainda outra TV, menor que a da área dos fregueses, igualmente no alto sobre uma prateleira. Fica numa quina, e à sua volta há uma espécie de altar botafoguense. Bonequinho do Botafogo, copo de alumínio do Botafogo, um troféu do Botafogo, um barquinho do Botafogo (e outro do Goytacaz, um time local), e até um inusitado ganso de vidro do Botafogo.

Saudades do Maracanã

O jogo recomeça no Maracanã. Imagens da torcida emocionam Assis, que sorri como se lembrasse dos muitos jogos que assistiu no estádio. Aquela edição esperta de TV mostra a massa humana, com direito à legenda para o grito da galera. Até quem não gosta de futebol imagina que deve ser uma experiência um tanto quanto transcendente estar em um lugar assim.

Em menos de dois minutos do segundo tempo já há reclamações no bar sobre o juiz. Resmungam sobre um impedimento marcado.

Aos treze, bem mais animado com o time, Assis se levanta, gira, passa perto do repórter e comenta:

— O Botafogo está jogando muito!

Embora mais animados, com o jogo e com o acúmulo etílico, o clima família permanece no bar. Uma cena singela, por exemplo, é ilustrativa: um cliente se aproxima do balcão, chama dona Ângela, e apresenta sua esposa, que acabara de chegar. Fazia as honras da casa e meio que mostrava que o lugar é de respeito. Ou seja: em outro dia ela não precisa voltar para fazer aquela fiscalização.

Os comentários continuam:

— É aquela ansiedade que tá matando ele — diz um cliente, sobre Túlio Souza, que havia entrado há pouco e já marcava falta sobre Thiago Neves. Isso, um minuto antes de um doloroso golpe sobre a torcida botafoguense: a expulsão de Alessandro, que cometeu sua quarta falta na partida.

A elevação da tensão dos torcedores contrasta com o tédio de uma garotinha, de não mais de seis anos, em uma das mesas. Com um arco verde fazendo moldura para os cabelos pretos, vestido branco com detalhes coloridos, ela escora a cabeça com a mão, muito próxima de cair no sono. Não deve entender a graça que aquele bando de gente vê nesse tal de futebol.

E eu estava um tanto inebriado com a imagem da garotinha quando o estrondo se deu:

— Goooooooolllllllll... Éeeeeeeee, do Botafogo!!!...

O pior juíz do mundo

Até tomei um susto com aquilo. E me senti feito um marciano ao lado daquele pessoal comemorando. Mas é bacana de ver. Gritaria geral. Abraços. Um cliente tira o chapéu e o veste no Assis. Cada replay é comemorado como se fosse um novo gol. Bola cruzada na área aos 40 minutos do segundo tempo, Renato Silva escora para a rede e faz o único gol da partida, como gostam de explicar os jornalistas esportivos, e lá estavam aquelas quinze criaturas, àquela altura talvez até um pouco mais, eufóricas como se tivessem vencido uma batalha.

O restante da partida é de uhhhsssss, ahhhhssssss, e, principalmente, "acabou", "chega", "tá bom", além de um inusitado "esse é o pior juiz do mundo!". O hino do Botafogo toma conta do bar depois do apito final. Até dona Ângela, geralmente séria e recatada, cantarola a letra.

No balcão, o sujeito hiper bêbado da bandeira enrolada que havia recebido cartão vermelho no bar reaparece. Pergunta quanto foi o jogo. Dona Ângela, agora mais desarmada, até goza da cara dele:

— Pô! Que botafoguense é você que nem viu o jogo?

E na torcida, alguém põe o pandeiro em ação.



[Matéria que fiz como exercício no curso de Jornalismo Literário ministrado, em abril deste ano, na AIC, pelo professor e jornalista Gerson Dudus]

3 comentários:

George Gomes Coutinho disse...

Belo texto Vitor! Me transportei para a cena!

Parabéns!

Marcos Valério Cabeludo disse...

Assim que a dona Madame permitir vou conhecer este boteco com certeza é muito bom!

Vitor Menezes disse...

Valeu, seu George. Abração!

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