terça-feira, abril 22, 2014

Prefeito de Tiradentes não atravessou o Rubicon

Ralph Justino, prefeito de
Tiradentes (MG)
Ontem estive com o prefeito de Tiradentes (MG), Ralph de Araujo Justino (PV). Ele não me conhece. Nem eu a ele. E assim continua a ser. Mas isso não impediu que este chefe de um poder local servisse à minha família uma bela concha de feijão fradinho. Foi no Banquete da Inconfidência, uma das atividades de uma programação cheia de civismo em memória do mártir Joaquim José da Silva Xavier.

Sem seguranças, sem séquito de puxa-sacos, acompanhado apenas de sua esposa, ele se pôs a labutar atrás de uma das mesas que ofereciam comidas a moradores e turistas. E não foi aquela cena típica de "abrir os trabalhos", fazer a foto oficial e sair. Ele ficou lá até acabar todo o caldo de  um panelão daqueles de cozinha industrial. Sem cobertura da secretaria de comunicação ou da imprensa local.

Era apenas mais um. E nem o principal. A sua mesa não era das mais disputadas, em concorrência desleal com as que ofereciam leitão à pururuca, linguiça de jiló, frango com ora-pro-nobis, entre outras delícias mineiras.

Mais cedo, ele havia feito seu papel oficial. Colocou coroa de flores na estátua de Tiradentes, hasteou a bandeira brasileira, acendeu a pira da liberdade e fez um discurso breve. Disse que a cidade tinha uma obrigação para com o Brasil, de preservar a memória do inconfidente e todo aquele patrimônio, mas que também tinha necessidades comuns a qualquer cidade, e precisava, no presente, manter-se como um bom lugar para viver.

Observando a simplicidade do prefeito, que me pareceu genuína, lembrei do presidente do Uruguai, José Mujica, que, infelizmente, ainda não me serviu um feijão fradinho, mas tenho certeza que o faria com prazer em seu sítio — se houvesse feijão fradinho no Uruguai.

Figuras assim não são necessariamente melhores ou piores na condução de governos, mas acabam por, ao liderar pelo exemplo, imprimir na política um sentido de transformação cotidiana acessível a todos. Gentileza, educação, simplicidade, são exercícios que qualquer cidadão pode praticar e que tornam a cidade muito melhor.

De tão raros, são por vezes tomados como loucos, como Lulu Bergantim, prefeito de Curralzinho Novo, cidade encravada na imaginação de José Cândido de Carvalho. Como se lembra o leitor, logo após a posse Lulu deu jeito na sujeira municipal sem licitação ou contrato milionário. Pegou ele mesmo na enxada, no que foi seguido por uma legião de munícipes, em "um enxadar de possessos".

Assim como Lulu, Ralph de Araujo Justino não atravessou o Rubicon.

segunda-feira, abril 21, 2014

[croniquinha de segunda]

Símbolo do desejo

Álvaro Marcos Teles

Levantou-se e foi ao toalete. Deixou o copo de cerveja pela metade. Na volta, surpreendeu o companheiro: com a mão direita sobre o ombro dele, apoiou o corpo. Inclinou-se e, com a esquerda, pôs algo no bolso da calça do rapaz. Sorriu, permeando o mistério. Pegou um Lucky Strike da embalagem bege e azul. Duas, três tragadas. Só fumava quando o grau etílico ultrapassava o limite do tolerável.

Preferiu ficar no bar, mesmo após a conta paga. Puxou a cadeira em outra mesa após despedir-se com beijinhos no rosto. Já em casa, pouco mais de três horas depois, recebeu uma mensagem: “Sua calcinha é linda”. Riu, lembrando da pequena peça azul, rendada e ligeiramente desconfortável – embora extremamente sexy. Não pediu de volta, não sugeriu nada. Apenas imaginou, em silêncio, vesti-la de novo pelas mãos alheias.

No dia seguinte experimentou a ousadia de propor um encontro íntimo, a dois. Tinha de ser especial, com direito a prévias. Compromissos familiares atrapalharam. Ficou a insinuação e o forte tesão de ambas as partes. Já trocaram muitos beijos e até carícias ardentes. Faltava a transa. Os dois pensaram e repensaram muitas vezes como seria. O objeto quase fálico permaneceu, intacto, na mochila dele.

Foi para cima e para baixo, em meio a intimidade de documentos, blocos de anotação, carregador de bateria de celular e uma garrafinha térmica de meio litro. Viajou algumas vezes, visto que uma das tarefas profissionais é exercida em outra cidade. Apesar de tudo, ninguém, além do “presenteado”, viu aquela insinuante, úmida e provocativa lingerie. Trocaram telefonemas, talks e bate-papos pelo Facebook nos dias seguintes.

Sempre uma conversa envolta pelo desejo mútuo, agora já representado materialmente falando. Numa ensolarada manhã de terça-feira, uma proposta surge despretensiosa: ver um filme de humor, já que achavam tanta graça da vida e tinham o que se pode chamar de “riso frouxo”. Na programação, talvez um choppinho e, finalmente, o aguardado momento da devolução. Assim o fizeram no sábado.

Se esbaldaram no cinema, beberam o suficiente para relaxar na praça de alimentação do mesmo shopping onde fica a sala de projeção, e rumaram para um motel próximo. Escolheram a simplicidade como cúmplice. Abriram o quarto, passaram pela salinha de jantar e se trancafiaram na suíte. Ele, calcinha no bolso da bermuda, espera pela companhia, que pediu para ir ao banheiro antes de começarem o que, provavelmente, não tinha hora para acabar.

Percebe o toque do celular deixado sobre o frigobar. Obedece, quando ouve: “pode atender para mim, por favor? Deve até ser engano, meu número é novo”.

Aperta o botão verde.
- Alô, é o Gustavo?

À indagação do outro lado da linha, responde:
- Não, não. Espera aí.

Tampa o telefone e grita:
- Amor, é para você mesmo.

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