segunda-feira, março 31, 2014

[croniquinha de segunda]

O caminho que segui

Álvaro Marcos Teles

Engoli o Gim. Duas doses. De vez. Minha garrafa, roubada do que sobrou de uma noite de esbórnia entre playboys e patricinhas, fica guardada no armário. Fosse cofre, seria meu tesouro. É também através daquele gargalo que sai minha coragem. Pus o uniforme. Como sempre, a camisa estilo social bege, gola vermelha e preta, de botões. Deixo os três primeiros abertos de propósito, a mostrar parte dos volumosos seios. Uso, quase sempre, sutiã branco bordado meia taça. Adoro provocar e contrasta com a pele negríssima. Já é, tenho consciência, minha profissão instintiva, intuitiva e lucrativa.

Apesar do colo, sei que os olhares vão para outro lugar. A calça marrom estilo secretária, justíssima, deixa minha enorme bunda ainda mais em evidência. Nos dias que me sinto mais quente, ainda ponho um saltinho. Arrumo o cabelo cacheado no espelho, abro o sorriso e mergulho de cabeça no fim de tarde. Sirvo primeiro uma família de prumo tradicional. O homem grisalho senta à cabeceira e parece um Sheik. Todos o aclamam. Dá às ordens. Gesticula. Fala alto. Se impõe, deixam de propósito. É grosseiro comigo. Me trata como empregada, sabendo que não sou.

Depois de atender a um jovem casal de "pombinhos" vou de novo ao banheiro atrás de novo gole. Subo às escadas rapidamente. Sinto um dedo me tocar por entre as pernas. Já preparando o tapa, me surpreendo ao perceber que o autor da provocação foi justamente o coroa imbecil. Ele fala umas merdas, tenta me convencer a transar depois do expediente. Só não quebrei uns dentes do cara por clemência ao emprego. Dedo em riste, me impus. O nariz do branquelo ficou vermelho por fora. E o meu, nervosa que estava, por dentro. Dei duas talagadas, cheirei uma carreira inteira. E voltei como se nada houvesse.

Por volta de onze e meia terminou o expediente. Eu tinha, contados, trinta e seis reais na carteira. Mais os quatorze da passagem, cinquenta. Consegui um bonde até o Centro. Andei uns 800 metros e fui até o restaurante antigo, onde trabalhava no início do ano. Logo na entrada um homem, tipo 40 anos, me abordou. Era cliente contínuo e sentiu minha falta. Primeiro gesto de carinho verdadeiro do dia, mesmo percebendo que ele queria, assim como o babaca anterior, me comer. Esse, por sorte, era educado e sabia tratar uma mulher. Para me desvencilhar, o socorro imediato de uma amiga prestou.

Ela me disse que, ao contrário do que eu imaginava, o almofadinha era gay. Tricô para lá e para cá, escapuli e dei mais um tapa no pó. O celular tocou. Não acreditei ao reconhecer o número de um velho conhecido, que já tinha me ajudado anteriormente. Só disse, ao saber onde eu estava, que usava cavanhaque agora, estaria em um Renault amarelo, e chegaria em 15 minutos. Pontual. Embarquei, cumprimentei-o com dois beijinhos no rosto e partimos. Sem perder tempo, foi direto ao novo Motel da cidade, em uma estrada estadual que vai até o município vizinho.

Confesso que gostei da ousadia. Não foi surpresa. Já tínhamos feito isso antes. Ele me pagava sempre R$ 100. Dessa vez deu R$ 150 por um boquete e uma trepada gostosa, com direito ao cu. Não usou camisinha. E nem eu pedi. Gozou fora, graças a Deus. E ofereceu carona. Ponderei que era longe. Ele argumentou que iria me fazendo carícias. E fez, mesmo. Mãos na coxa, no pescoço... Lambi os dedos dele agradecida e, posso afiançar, honrada. Com as duzentas pratas da féria vou ajudar no tratamento de meu afilhado, Down. Deixei o dinheiro embaixo da garrafa verde de café, na cozinha. Amanhã é outra noite.

quinta-feira, março 27, 2014

[crônicas urgentes]

Um louco no tempo

Felipe Sáles

Tínhamos muito medo do destino de Alexandre. Acho que só ele nada temia, pois afinal, não ligava pra porra nenhuma mesmo: diante de qualquer adversidade, sua reação era debochar e tocar uma guitarra imaginária. Mas simulava de um jeito tão genuinamente ingênuo que a gente chegava a ouvir o riff. O trejeito era repetido até quando a vida desafinava, como na vez em que foi demitido logo após sua mulher engravidar. Alexandre era um dos melhores vendedores de plano de saúde da região, até porque burlava o sistema para que velhinhos comprassem o serviço a preço de criança.

Foi seu primeiro e único emprego na vida, embora na época já fosse formado em Jornalismo e aluno de Publicidade, curso que abandonaria a seis meses do fim. A gente conversava, aconselhava, mas ele nem aí: ria e saía empunhando a guitarrinha imaginária. Naquela época, morava com a mãe, tinha bolsa de estudo e nenhum dinheiro. Trocava a sala de aula pela cantina, e feito cão sem dono, ficava ali à espreita da xepa. Por várias vezes fuxicou a lixeira, sem qualquer constrangimento. A gente dava esporro, ajudava, mas Alexandre, nada: de boca cheia, saía tocando um solo particular.

Conheceu a esposa nessa época. Ela tinha metade da sua altura, mas fora essa diferença, era doidinhazinha como ele. Logo os dois sumiram no mundo, como fazem os apaixonados. “Devem estar num jantar romântico nas esquinas da Pelinca”, a gente brincava. Um dia, os dois ressurgiram na faculdade – flagrados no banheiro, transando. Deu uma merda danada e a diretora ameaçou expulsá-lo. “Tudo bem, eu nem sou mais aluno!”, respondeu antes de mais um solo, com direito à namoradinha no baixo.

Essa mania de guitarra imaginária é uma releitura, eu acho, de “Bill & Ted, dois loucos no tempo” – espécie de exterminador do futuro adolescente, produzido exclusivamente, talvez, para a sessão da tarde. No filme, Bill e Ted são assassinados por clones-robôs do futuro, duelam com a Morte, negociam com Deus e retornam triunfantes para salvar o universo. No fim das contas, foi quase isso que Alexandre fez.

Ao ser demitido, ele saiu pelas ruas feito doido, solando e balançando a cabeça num metal da pesada. Mas logo o telefone tocou. Convocado a se explicar ao dono da empresa, Alexandre viu a chance de redenção com Deus e o mundo. Argumentou que aumentar o número de pacientes foi vantajoso, que não roubara um centavo sequer e que, porra, o preço era extorsivo mesmo. Acabou recontratado – e como gerente. Está lá até hoje.

Fora o carro importado e a mesa farta, Alexandre não mudou nada. Continua casado com a doidinhazinha, e no ano passado tiveram a terceira filha. Tornou-se um paizão, embora inconsequente. Dia desses, seu menino tentou enfiar o dedo na tomada, mas em vez de repreender, ele ponderou: “Filho, se você fizer isso vai levar um choque. Mas é legal pra caramba!”. O moleque se eletrocutou, deu uma gargalhada e dedilhou acordes junto ao pai. Assim Alexandre segue tocando a vida, transformando aquele canto torto numa pueril melodia.


segunda-feira, março 24, 2014

[croniquinha de segunda]

Desbancou a relação

Álvaro Marcos Teles


Gilberto chegou ao banco esbaforido. Um cheque de R$ 2,5 mil não tinha entrado na conta. Faltou identificação do beneficiário. Na maquininha digital, logo após a porta de vidro que separa os caixas eletrônicos do restante da agência, pegou a senha de número 103. Ouviu o chamado da 90 antes de acomodar-se na terceira cadeira da segunda fileira de confortáveis assentos avermelhados. Pensou na hora de voltar ao trabalho o mais rápido possível. O tempo corre rápido.

De repente entra no recinto uma mulata alta, magra, de camiseta preta bordada nas alças e minúsculo short amarelo - desses modernosos, que parecem saia quando vistos de frente. Apreciava através dos estratégicos óculos escuros. O distraiu por alguns instantes. Mesmo o forte ar condicionado não impediu que suasse a testa, reação orgânica característica para refletir a ansiedade. Quando finalmente chegou a vez explicou o caso ao caixa, um simpático rapaz identificado como Everaldo Modesto no crachá.

O bancário ergueu a sobrancelha esquerda e, quando se preparava para roer as unhas, teve o pensamento interrompido por Laiz, e estonteante morena sentada ao lado. Ela indicou o caminho a ser trilhado. Ambos precisavam, contudo, do gerente Teobaldo Américo. O chefe havia saído para almoçar. O identificaram como um homem baixo, calvo, vestido com uma camisa azul listrada de mangas compridas e mochila nas costas. "Ele saiu na mesma hora que o senhor chegou", informou Everaldo.

Foi o homem que tropeçou no pé de Gilberto na porta da agência. "E eu ainda o xinguei de tudo que foi nome", pensou, ao lembrar da reação. Com a previsão de uma hora para o retorno de quem poderia salvá-lo, resolveu esquecer o calor e dar uma volta no quarteirão. Tomou um sunday de morango ao salgado preço de R$ 3,50. Andou quase um quilômetro. Reparou intensa movimentação de carros de polícia. Deu de ombros. Pareceu um alvoroço qualquer, sem sentido, para chamar a atenção e dar a falsa sensação de agilidade.

Retornou antes do previsto. Sentou novamente em uma cadeirinha vermelha, desta vez próxima ao banheiro. Surpreendentemente ouviu um som familiar vindo da direção do sanitário masculino. "Claro que sim. Não tem como esperar. E vai ser hoje", dizia a voz que, segundos depois, Gilberto reconheceu pertencer a um jovem rapaz, barbicha rala, alargadores nas duas orelhas e com o livro "A obstrução programada da Via Láctea" nas mãos. Quase no mesmo instante, recebe um SMS de Teresa, amiga que insiste em dar em cima dele.

Tinha o link www.rondapolicialregional36h.net/noticiasdodia/corpoencontradoemvalao
Clicou e leu logo no primeiro parágrafo: "A moça de 17 anos, desaparecida há uma semana, está mesmo morta. O suspeito de ter cometido o crime é um estudante de astronomia..." Lembrou de não ter visto Amanda, a namorada do vizinho esquisitão, nos últimos dias. Gelou a espinha. Ele parou ao lado de Gilberto, abaixou-se, e balbuciou baixinho, em tom afetadíssimo: "Vou para Londres, fofinho".

terça-feira, março 18, 2014

Muqui prorroga inscrições para festival de TV e Cinema

Da Assessoria do Evento

O Fecin - Festival de TV e Cinema do Interior – realizado em Muqui, sul do Espírito Santo, prorroga as inscrições de curtas-metragens até o dia 15 de abril. As inscrições podem ser feitas pelo site  www.fecin.com.br. Os curtas concorrerão ao troféu Catraca de melhor filme de ficção, melhor animação, melhor documentário, melhor série de TV (ou WebTV),  melhor ator, melhor atriz, e prêmio do júri popular. O Festival acontece de 01 a 07 de setembro deste ano no maior sítio histórico do Espírito Santo. Na última edição, o Festival recebeu mais de 150 filmes entre capixabas, nacionais e internacionais.

Este ano o festival lança a Mostra Catraca, que vai promover uma mostra de filmes na página do Festival. Podem se inscrever filmes finalizados em qualquer ano e que já estejam disponíveis na web. Uma votação online escolherá o melhor filme antes mesmo da data do evento. O vencedor desta categoria, além de levar o troféu catraca, será exibido na noite de premiação na praça da cidade.

O Fecin dedica-se ao diálogo entre TV, Cinema e Internet, espaços em que a produção audiovisual circula e ganha visibilidade. Além do cinema e da TV, o Festival traz uma programação cultural extensa ao sul do Espírito Santo, sempre com opções para crianças, jovens e adultos em ações abertas ao público.  Muqui é conhecida pela beleza arquitetônica, pelas manifestações folclóricas e agora pela arte audiovisual. Com o lema “O que te faz voar?” e o tema “Invenção e imaginação no universo do interior”, o Fecin oferece sete dias de programação gratuita com mostras de filmes, séries e webTVs, oficinas, bate-papo, shows musicais, cortejo poético, olimpíada audiovisual entre escolas, e uma feira de invenções.

Na edição deste ano, o Festival dedica atenção especial à infância, conferindo importância à imaginação para a constituição da identidade da criança e o papel desta como sujeito produtor de cultura. Mas apesar do tema, trabalhos de qualquer temática podem se inscrever para as mostras competitivas de TV e Cinema.

Festival ganha novo nome e roupagem

Em 2014, o “FECIM - Festival de TV e Cinema de Muqui (ES)”, realizado desde 2012 na cidade histórica capixaba, passa a se chamar FECIN - Festival de TV e Cinema do Interior do Espírito Santo. Mesmo realizado em Muqui, o Festival se renova com perspectivas de realizações nos municípios adjacentes do Estado. A proposta, segundo os organizadores do evento, é ampliar as formas de percepção do interior do país, reconhecendo o seu potencial criativo e as inspirações em histórias de seu povo, valorizando sua cultura. Além disso, o objetivo é atrair investimentos federais para iniciativas culturais no Espírito Santo, dando, assim, visibilidade e reconhecimento ainda maior para o interior do Estado. “Queremos fazer um festival cada vez mais próximo também do nosso interior, refletir sobre coisas que mexem com a criatividade do ser humano e tratar de universos próximos da economia criativa”, afirma Léo Alves, diretor do Festival.

Serviço:
Inscrições prorrogadas para o Fecin – Festival de TV e Cinema do Interior do Espírito Santo – Muqui – ES
Formulário de inscrição e regulamento no site do festival: www.fecin.com.br
Informações: contato.fecim@gmail.com.
Fim das inscrições: 15 de abril de 2014.
Data do festival: 01 a 07 de setembro de 2014.
Local: Teatro Neném Paiva, no centro, e Praça Pública Municipal de Muqui.

sexta-feira, março 07, 2014

[crônicas urgentes]

Bolo de Chocolate

João Paulo Arruda

Fica óbvio pra mim que a aventura acabou quando a segunda viatura azul e amarela fecha a BR-101 e sou obrigado a frear. Saio do carro completamente nu, mas não me dou ao trabalho de levantar as mãos. Nem de usá-las pra tapar os ovos. Na verdade, para eterno horror dos bravos agentes, vou caminhando pela linha amarela contínua e aproveito para ultrapassar os limites, todos, do bom senso enquanto requebro e berro: "Kátia Flávia!". Talvez seja aí que tenha acordado o cantor. Ele desce com duas das velas, duas das 39, já acesas, e sorri enquanto lança. O pavio dá o tempo certinho dos canas se abrigarem ao lado da estrada. A dinamite explode o carro do xerife. Os policiais que vinham logo atrás perdem um tempo precioso encagaçados. Eu assumo de novo o volante. O bigodudo de volta ao banco do carona. Ele tem o bigode e a gaita. Mas Burt Reynolds sou eu. Acelero muito para furar a tela do cinema e comer o asfalto, a BR-101 e a distância. Agarra-me se puderes, é o que penso, para não pensar no quiseres.

O bigodudo está no carro comigo por causa do lance do puteiro. Em dado momento da aventura, bateu aquele bom senso e parei à beira da BR. Em Casimiro de Abreu. Pareceu-me um lugar adequado. Não que eu seja poeta. Mas de depressão entendo. E a cidade é uma merda. Logo... Juro que estava desistindo. Mas aí a puta tentou sorrir. E era tão falso o sorriso que me veio Roberto Carlos avisando: não arrisco na banguela. Coração de novo disparado, corri pro carro. Pelado. O bigodudo, que obviamente nao era apenas um cantor, veio junto sem dizer nada e ocupou o banco dele.

Cuidado com a porra do bolo, avisei.

Dez minutos e uma viatura berrando enlouquecidamente atrás da gente depois, ele só comentou distraidamente sobre velas.

Nunca perguntei como ele sabia que era meu aniversário. E a quantidade de velas exata que devia levar. Se ele sabia isso, sabia também que não sei dirigir. E que o bolo, não o carro, era roubado.

Deu-se que mais cedo, naquele dia, entrando na padaria, estava na cabeça o "Feliz aniversário / envelheço na cidade." Mais tristeza do que ira. Aí notei o bolo. De chocolate. Peguei, dobrei a Mendes Tavares correndo, entrei ofegante na Barão de Cotegipe e vi um velhinho sentado na calçada, uma cuia de esmola e uma viola na mão. Ele me deu a chave do Escort azul marinho, agradeceu as moedas e cantou uma música que esperava uma história: "Não pare na pista / é muito cedo pra você se acostumar / Amor não desista..."

Entre uma coisa e outra, meu aniversário indo embora, comecei a cantar "a gente corre / na BR 3 / a gente morre / na BR 3".

E por mais que eu acelerasse, nunca chegaria a Campos em tempo.

O bigodudo gastou todas as velas restantes imitando Tonho da Lua, explodindo a estrada e mantendo os policiais à distância.

Ele também sabe que ninguém corre assim por causa da Rutinha. Mesmo que chegue atrasado.

Já não era mais cinco de março quando entramos. Abandonamos o carro, consegui, de algum jeito, um paletó de linho branco, que em algum lugar do passado, lá em Campos já foi flor. E sentamos à beira do caminho, pra pedir carona, de volta pro Rio.

Pelos olhos dele percebi imediatamente que procurava palavras pra me consolar, sei lá, dizer que a aventura não foi em vão. Que sempre teremos Paris. Pra evitar isso, pedi, logo depois de lembrar que não sabia o nome dele, do bigodudo:

Toque outra vez, Sam!

Quero a sessão de cinema das cinco, pra beijar a menina e levar a saudade, na camisa toda suja de batom...

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