segunda-feira, agosto 26, 2013

[croniquinha de segunda]

Pânico no ar

Álvaro Marcos

"Boa tarde, amigo ouvinte. Abrem-se as cortinas para mais um espetáculo esportivo em Pinduinha. Os senhores vão acompanhar o confronto entre o Nacional e o Jangadense, pela terceira divisão do campeonato Tancredista. Conosco o comentarista Sávio Amazonino. Ele faz a melhor análise do rádio brasileiro. Os repórteres Armando Zanoto e Luís José Salviano vem daqui a pouco com todos os detalhes dos clubes. A jornada começa agora com o oferecimento da cerveja Balza, o puro malte; das Casas Espíndola, tudo em eletrodomésticos; da loteria do Janjão, onde sua aposta vale ouro; e do restaurante Carne na pedra, o mais gostoso da cidade".

O vozeirão não deixava dúvidas: Fred Scapelloto estava no ar. Como em todas as tardes de domingo, a rádio Pinduinha ecoava nas ruas, carros e casas das redondezas. São oito municípios da serra de Tancredo (novo estado criado pela União) acompanhando par e passo a competição estadual narrada pelo mais famoso locutor da região, funcionário aposentado do banco do governo, que empunha microfones desde adolescente. Mas este não seria um fim de semana comum. Pelo menos para a família e amigos do "trepidante". Como costumava fazer, chegou ao estádio com três horas de antecedência. Mal sabia o que o esperava.

Filho caçula, Alexandre desapareceu logo após o almoço na casa da avó. Foi à calçada colocar a moto para dentro da garagem lateral e não voltou. À princípio especulou-se que havia saído para encontrar a namorada, mas a hipótese acabou descartada após ligação de Flávia para a matriarca da família de descendentes italianos. O celular chamou até cair a ligação. Nada de alguém atender. Foi assim até o início da noite. Por volta de cinco e meia, de tanto insistir, dona Marluce consegue ouvir uma voz do outro lado da linha. Alguém rouco, informando que o rapaz não voltaria antes do pagamento de um resgate de trezentos mil dólares em dinheiro.

"E lá vai Sabino. Recebe na direita, tenta passar pelo lateral e a bola sai pela linha de fundo. É escanteio. Canhotinho vai jogar na área, Zanoto!" "É verdade, Fred. Ele treinou durante toda a semana. O zagueiro Orelhão vai tentar a cabeçada. Vem ela aí, Scapelloto". "Canhotinho cobra, a zaga rebate, Toinho bate e é gol. Gooooooooooolaço do Nacional. Toinho, camiza dez, aos quinze minutos do segundo tempo. Vibra a torcida azul. Agora no placar: Nacional, dois; Jangadense, um. Zanoto!". "Ele veio na corria, nem deixou a bola quicar e chutou de primeira, no canto do goleiro Anselminho. É o décimo gol de Toinho, artilheiro da competição".

Enquanto Amazonino comentava o lance, tremeu o telefone de Fred, colocado no bolso esquerdo da calça. Os sequestradores exigiram a recompensa sem mais delongas. Atônito, o radialista não soube o que fazer. Não dispunha de tal quantia. Fez sinal com a mão direita para Sávio esticar falatório. O próprio Alexandre indicou a senha de concordância: ele deveria ler, três vezes seguidas, o anúncio da Balza. Assim foi feito. Como uma mágica, Fred Scapelloto pegou um binóculos jogado na cabine e enxergou o pimpolho no meio da arquibancada. Engasgou e atirou longe o enorme fone de ouvidos que usava há mais de uma década.

Copo ao alcance. Duas, três goladas. Suficiente para acelerar o ronco. Novamente sonhos confusos. Filho sorrindo, caneta falhando, mulheres reclamando, time perdendo, trabalho escravizando, gente chantageando... Teve de tudo um pouco. Eram rompantes, delírios quase verdadeiros de realidade clara, absoluta, eminente e absurda. Mistura de formas e rostos, vertentes e mentiras. Mistério, por assim dizer.

domingo, agosto 25, 2013

Nós não somos nada

A minha missão era a de resgatar alguns livros e quadros. Quando soube da sua morte, ainda que não tivesse com ele relações pessoais significativas e nem mesmo sintonia artística, a notícia veio acompanhada do relato de que toda a sua obra estava se perdendo. Artista plástico solitário, Renato Pessanha havia deixado casa e acervo para uma cuidadora de idosos que o acompanhou na velhice. E agora o que me chegava era que seus quadros estavam sendo levados por quem quisesse e seus livros estavam próximos do lixo.

A casa de fundos em terreno de área central, próximo a alguns dos grandes prédios que tomam as áreas nobres, mantinha um ar interiorano de distrito. Pequena, de desenho modesto, muro baixo antes da varanda estreita. A marca do morador estava na majestade singela de um quase caramanchão que formava um arco sobre o portão de madeira. A sinalização era nítida: a morada é simples, mas a alma é aristocrática.

São Francisco, em quadro
de Renato Pessanha
O que vi foram os restos depostos de uma vida, em meio a um terrível e persistente cheiro da morte. Seu corpo havia sido encontrado há algumas semanas, na sala, pela senhora cuidadora, esta mesma que me dizia agora que tudo estava muito melhor, em comparação com aqueles dias trágicos em que precisou acionar policiais, bombeiros e até mesmo profissionais do ramo da desinfecção.

Experiente, ela me confirmava, enquanto me contava a cena que vira, aquilo que é comum ouvir nestes casos: “nós não somos nada”. E com senso prático me convidava para entrar, e me mostrava os livros do artista morto, e exibia objetos de trabalho e de devoção religiosa. Eu poderia levar o que quisesse, com exceção de um imponente oratório de madeira escura e tamanho intimidador, que seria doado para a igreja frequentada pelo artista.

E os quadros? Perguntei. Foram levados por um amigo da senhora, interessado em aproveitar as molduras.

A obra derradeira do artista só não estaria totalmente perdida em razão de um destes infortúnios da vida que acabam por se tornar providenciais. Doente e sem dinheiro, nos seus últimos anos vinha pagando consultas médicas e exames com seus quadros.  Estas telas, atualmente pertencentes a alguns doutores da cidade, escaparam da má sorte de servirem apenas de adorno para as molduras que viriam a interessar ao certo conhecido da herdeira.

Nenhum dos seus parentes diretos se interessou pelo seu espólio. E nem fizeram objeções à sua vontade manifesta de deixar todos os seus bens (que se resumiam à casa, aos livros, aos quadros e a poucos móveis) para a senhora, a única que restou em sua companhia e que nem mesmo, há muitos anos, salário recebia. As providências legais foram tomadas por uma irmã, que mora no Rio, a quem pareceu ser justa a escolha do irmão pela herdeira.

Ele era “complicado”, me contou a cuidadora, mas ela se dava bem com ele. Era das poucas, se não a única, que recebiam ligações quase diárias e que, justamente por isso, estranhou a ausência de notícias e os telefonemas não atendidos. Em alguns dias o encontraria morto.

Os parentes é que não gostavam das suas idiossincrasias. Não explorei detalhes, péssimo repórter que sempre fui, mas ouvi o bastante para saber, por exemplo, que o artista havia se tornado um religioso de convicções muito ortodoxas e que queria impor a familiares comportamentos rígidos esperados pela doutrina que professava.

Não tenha em mente o leitor, portanto, a imagem típica de um artista incompreendido, controverso e “à frente do seu tempo”, por isso renegado por uma família conservadora. O que aqui temos é quase o oposto: um pintor tomado por fortes convicções religiosas, que acreditava estar rodeado por pecadores e que dedicava a maior parte da sua arte aos temas da igreja. O mundo, para ele, estava perdido, e houve até mesmo oportunidade em que cobrou providências do Vaticano e da igreja local contra a investida anticristã que via tomar conta da sociedade.

Professor de história, religioso fervoroso, pintor e restaurador, seus livros retratavam estas preferências acumuladas por décadas. Encontrei obras raras do catolicismo, volumes de arte e história, em meio a alguns álbuns de fotografias, na maioria dos casos com reproduções das suas telas. Muitos deles com anotações e desenhos (que estão até por se transformar em uma exposição).

Confesso que, enquanto remexia seus livros, cheguei a me sentir tentado a uma íntima vingança histórica. É que havia muitas publicações tradicionalistas que demonizavam o comunismo, o que mexia com a minha afetiva inclinação adolescente de esquerda e com o meu ceticismo maduro de quase ateu. Lembrei-me das centenas de livros proibidos e queimados pela igreja, quando não iam para fogueira seus próprios autores, e me vi na condição de quem poderia também desaparecer com parte de um registro que, para mim, é de opressão e obscurantismo. Mas sorri sozinho e pensei: não farei como eles.

Após uma triagem feita pelo bravo amigo Wellington Cordeiro, deixamos parte do acervo na Associação de Imprensa Campista, e outra parte destinamos a um seminário católico indicado pelo professor Wainer Teixeira, onde terá melhor proveito. Afinal, o direito à memória e ao conhecimento é maior do que nossos sentimentos mais mesquinhos. E nós não somos nada.

sexta-feira, agosto 23, 2013

segunda-feira, agosto 19, 2013

[croniquinha de segunda]

Resposta comercial
Vitor Menezes

Querida TAM,

Não sei se vocês estão preparados para a notícia que vou dar. Ainda assim, embora seja dolorosa, vou ser direto. O fato é que meu pai morreu. E isso aconteceu em 1989. De modo que não poderei comprar para a ele a passagem aérea que você me oferece por e-mail nesta promoção do Dia dos Pais. Me desculpe por frustrar a sua expectativa.

Agradeço pela oferta e, sobretudo, pela oportunidade de me dar conta de que meu pai nunca foi seu cliente. Nem de nenhuma companhia aérea, pois simplesmente nunca andou de avião, ao menos que eu tenha tido notícia.

Ele percorreu muitos cantos do Brasil, mas era de um tempo em que os mais pobres só podiam fazer isso de ônibus ou de carro. Ele fazia de carro e de moto. Adorava dirigir. Creio até mesmo que, se ainda fosse vivo, e com condições financeiras para aproveitar as suas promoções, ele iria preferir rodovias a aerovias.

Era um típico ser da era do automóvel, amadurecido para o mundo durante os anos de encantamento brasileiro com este tipo de veículo, nos anos 50 e 60. Foi proprietário de Jeep Willys e de moto Harley-Davidson, e experimentou com estas máquinas prazeres que não estão acessíveis aos espremidos passageiros das aeronaves comerciais.

Gostava de viver ao ar livre, de pescar e de caçar, quando não havia restrições politicamente corretas a nenhuma destas preferências. E viajava bastante pelo interior do País, onde até hoje não existe muita oferta de voos.

Talvez nenhum dos seus marqueteiros tenha ideia do que seja percorrer mais de setecentos quilômetros, no conforto restrito de uma Variant, somente para pescar na curva específica, de um rio específico de uma cidade específica no Sul da Bahia. E voltar com quantidade de peixes não muito diferente da que encontraria em qualquer rio da sua região.

Obviamente você deve ter pensado na “relação custo-benefício”, esta mesma que você pensa quando me oferece uma oferta. Mas ele não se importava com isso. Seu benefício foi ter vivido de bem com as suas escolhas, e isso a todo custo.

Atenciosamente,

Vitor

segunda-feira, agosto 12, 2013

[croniquinha de segunda]

Fada do dente

Álvaro Marcos

Tremi. Percebi alguma coisa diferente. Um incômodo. Algo se mexendo pra lá e pra cá. E eu, sem explicação. Parecia turbulência. Mudança repentina. Latejava. Entre dois polos, ardor. Paciente, esperei o melhor momento para capturar as informações. Sabia, só, que doía. Não era dor profunda, contundente. Era suavemente constante.

Espécie de aviso. Anunciei. Mamãe, atenta e perspicaz, fez questão de interferir a seu modo. Com um jeito suave, macio, conversou comigo. Explicou em poucas palavras seu espanto misturado a contentamento. Era, sim, novidade. Descortinava-se, ali, nova realidade. Boa ou ruim, ainda não sabia.

Me importava mais, sinceramente, o detalhamento do que o fato em si. Pude ouvir um relato sereno, de quem tem voz mansa e sabe usar milimetricamente as frases certas na hora exata. Mãe é assim: binóculos nos olhos, estetoscópio no ouvido e um tato capaz de decifrar a mais complexa filosofia humana.

Pronto, relaxei. E disse o que me afligia tanto: o "pulsar" inédito da minha arcada inferior. Bem na frente. Ela, astuta, decodificou a mensagem. Relaxou e tratou, imediatamente, de providenciar meu alívio. Fração de segundos e já mostrava, toda orgulhosa de mim, o dente extraído sem esforço.

Pensei logo na "fada", de histórias que ela me contou há tempos. Sorriso no rosto, mamãe respondeu pela expressão facial: "Sim, ela virá. Você adivinhou"! Risonho e deficitário, numericamente falando, me gabei. Além de acertar em cheio a interpretação do acontecido, ainda vou ganhar bênção!

Certos novos conceitos, confesso, ainda me parecem estranhos. Dia seguinte vi notícia sobre a história de José pela tevê. Na sequência, mesma data, assisti a glória de Maria. Posso até ouvir meu pai detalhar a diferença entre uma alma talhada na retidão e um corpo esculpido ao bisturi.

Ôpa, meu pai surgiu na memória. Sim, tenho família. Afastada e unida, como se esses antônimos do dicionário fossem gêmeos. Parecido com meus dentes agora. Não há distância que nos separe. Queria, mesmo, mostrar pra meu irmão esse dentinho. Tô até vendo o semblante dele, tímido e amigo. Daqui, meu abraço apertado. Sempre!

segunda-feira, agosto 05, 2013

[croniquinha de segunda]

Beijei o Cazuza

Álvaro Marcos

Via a vida pela óptica da escolha. Não entendia a dúvida interna entre pudor e poder. Preservava-me dos meninos afoitos. Aos tímidos, oferecia um pouco além. Doava sensações, indiscretamente. Preferia sempre, indistintamente, os cautos. A estes permitia língua, toques e retoques sensuais, provavelmente além do limite imposto socialmente à minha tenra idade. A maneira de protesto e firmamento prevalecia.

Era o inconsciente de menina interiorana da década de 80. Sentia os seios crescerem, percebia lubrificação vaginal. Detalhar os motivos era pensar como adulta, ou adúltera. Em determinado momento, as palavras pareciam sinônimas tal exercida chibata paterna. Ouvir que moça tinha o casamento pré-marcado parecia comum, simples, trivial. Menos para mim, revolucionária desde as letras iniciais. Questão de personalidade desvirtuada, sei lá...

Identifiquei-me, sempre, com homens. Deles prezo amizade, fidelidade e respeito. E tesão, que eu conseguia reduzir a tiquinho. Não importavam tentativas e blefes. Sobressaia a integridade dessa troca miúda. Árdua em apartar avanços, próspera no conceito divisor de águas ao qual perseguia e acreditava. Fidelizei-me. Consegui - loura, linda e desejável - conquistar lugar altivo, inatingível e respeitável na macheza.

Foi, sei, com meu jeito berçário de sinceridade. Adicionando pitadas de desbocamento e, forçosamente, firmamento de pensamento. Não podia, de jeito algum, me deixar vencer por atrações momentâneas, paixões sem sentido, ilusões infantis. Crescia e amadurecia, ali, minha alma feminina libertária. Excêntrica para alguns, estranha no seio do lar e admirada pelas amigas. E, especialmente, pelos rapazes.

Ganhei altura, cabelos e peso. Aos 17 mandava em mim, contestava pai e mãe e liderava a trupe. Com discurso veemente, visceral, temperado de pitadas de irresponsabilidade e genialidade em doses até hoje insanáveis, lá fui eu caçar ingresso para o show do Barão Vermelho na terceira cidade vizinha. Era procura frenética, alucinada e quase inalcançável em pleno 1984. Apoio, zero. Dificuldades, milhares. Pensar em desistir, jamais.

Consegui, com míseros trocados, o bilhete para a apresentação. Peguei carona num fusca 68. Encontrei colegas, levados pelos pais. Assisti, vibrei e decidi algo a mais. Queria ver o grupo pessoalmente, no camarim. Sugeri-me ao segurança. Passei. De repente estava lá. Foram cinco minutos. Cazuza me conduziu à porta. Abracei seu pescoço. Nos beijamos alucinadamente. Tiveram de apartar. Seus lábios guardo como troféu até hoje, 29 anos depois.

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