quinta-feira, março 27, 2014

[crônicas urgentes]

Um louco no tempo

Felipe Sáles

Tínhamos muito medo do destino de Alexandre. Acho que só ele nada temia, pois afinal, não ligava pra porra nenhuma mesmo: diante de qualquer adversidade, sua reação era debochar e tocar uma guitarra imaginária. Mas simulava de um jeito tão genuinamente ingênuo que a gente chegava a ouvir o riff. O trejeito era repetido até quando a vida desafinava, como na vez em que foi demitido logo após sua mulher engravidar. Alexandre era um dos melhores vendedores de plano de saúde da região, até porque burlava o sistema para que velhinhos comprassem o serviço a preço de criança.

Foi seu primeiro e único emprego na vida, embora na época já fosse formado em Jornalismo e aluno de Publicidade, curso que abandonaria a seis meses do fim. A gente conversava, aconselhava, mas ele nem aí: ria e saía empunhando a guitarrinha imaginária. Naquela época, morava com a mãe, tinha bolsa de estudo e nenhum dinheiro. Trocava a sala de aula pela cantina, e feito cão sem dono, ficava ali à espreita da xepa. Por várias vezes fuxicou a lixeira, sem qualquer constrangimento. A gente dava esporro, ajudava, mas Alexandre, nada: de boca cheia, saía tocando um solo particular.

Conheceu a esposa nessa época. Ela tinha metade da sua altura, mas fora essa diferença, era doidinhazinha como ele. Logo os dois sumiram no mundo, como fazem os apaixonados. “Devem estar num jantar romântico nas esquinas da Pelinca”, a gente brincava. Um dia, os dois ressurgiram na faculdade – flagrados no banheiro, transando. Deu uma merda danada e a diretora ameaçou expulsá-lo. “Tudo bem, eu nem sou mais aluno!”, respondeu antes de mais um solo, com direito à namoradinha no baixo.

Essa mania de guitarra imaginária é uma releitura, eu acho, de “Bill & Ted, dois loucos no tempo” – espécie de exterminador do futuro adolescente, produzido exclusivamente, talvez, para a sessão da tarde. No filme, Bill e Ted são assassinados por clones-robôs do futuro, duelam com a Morte, negociam com Deus e retornam triunfantes para salvar o universo. No fim das contas, foi quase isso que Alexandre fez.

Ao ser demitido, ele saiu pelas ruas feito doido, solando e balançando a cabeça num metal da pesada. Mas logo o telefone tocou. Convocado a se explicar ao dono da empresa, Alexandre viu a chance de redenção com Deus e o mundo. Argumentou que aumentar o número de pacientes foi vantajoso, que não roubara um centavo sequer e que, porra, o preço era extorsivo mesmo. Acabou recontratado – e como gerente. Está lá até hoje.

Fora o carro importado e a mesa farta, Alexandre não mudou nada. Continua casado com a doidinhazinha, e no ano passado tiveram a terceira filha. Tornou-se um paizão, embora inconsequente. Dia desses, seu menino tentou enfiar o dedo na tomada, mas em vez de repreender, ele ponderou: “Filho, se você fizer isso vai levar um choque. Mas é legal pra caramba!”. O moleque se eletrocutou, deu uma gargalhada e dedilhou acordes junto ao pai. Assim Alexandre segue tocando a vida, transformando aquele canto torto numa pueril melodia.


Um comentário:

Splanchnizomai abraçando o amanhã. disse...

Este é mesmo um tempo de loucos...
Loucos que escrevem
Loucos que lêem
Que interpretam

"Fabular"

É tempo de contar "coisas"
Vistas
Ouvidas
Interpretadas

Tempo de "cronicar" tudo o que não pode ser explicitamente explicado.

Muito menos compreendido.

É tempo de loucos sem mania porque sabendo-se lúcidos, forjam

É tempo de loucos ante as evidências de um mundo criado para...

É tempo de loucos ante si mesmos buscando a resposta que não quer

Loucos que não querem a verdade dos fatos e que, por isso, preferem a loucura...

Buscam a loucura.
É tempo...

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