sábado, novembro 29, 2008

Bar do Estranho

O Urgente! anda com prazos muito difíceis de serem cumpridos, mas se ainda vale segue aí minha história sobre o Bar do Estranho.



A Arca do Estranho


Era noite de Natal e eu estava no último lugar onde o menino Jesus escolheria nascer neste planeta - e nem me refiro apenas a Campos dos Goytacazes. Era mais precisamente num punhado de metros quadrados, cercado por tijolos vermelho-sangue, na esquina das ruas Gil de Goes e Conselheiro José Fernandes, ali ao lado do Liceu e da Câmara Municipal. Estava acompanhado de Artur, Flavinha e sua tia Tânia. Ainda era cedo, umas 17h talvez, só tomaríamos aquelazinha antes da ceia. O problema foi o local - escolhido porque, simplesmente, era um dos únicos botequins da cidade com a cara de pau de abrir os porões em plena véspera de Natal. Imagina uma caverna cheia de cabeças-dinossauros urrando pelos cantos?, um tipo de Arca de Noé construída para naufragar junto com as espécies mais mal-feitas do planeta? Não é, no mínimo, o tipo de ambiente para o menino Jesus brincar com os carneirinhos.


Diziam que sua alma era sugada pelas paredes quando se entrava lá. Verdade ou não, é o único argumento que teremos por termos faltado ao 2006º aniversário de Cristo. Mas Ele há de entender. Sujeito estava lá numa boa, de bobeira, se distraiu e de repente a Terra girou até as 23h50 quando a terceira saideira chegava a nossa ceia. O dono do bar tinha todo o direito de nos expulsar às cadeiradas, mas o maldito infeliz sequer cogitou fechar as portas por dois minutinhos só para a porra do menino nascer. Ninguém tinha o mínimo de vergonha - e olha que eram muitos, umas 10 ou 30 pessoas, se bem me recordo. Só às 23h55, como se um raio fulminasse consciências e fígados, até o mais fétido bêbado ruborizou e sumiu na escuridão. Juro que, por um misto de curiosidade e confessa falta de vergonha, quis ficar para ver quanto tempo levaria até o próximo cliente aparecer. Meu plano durou só até meia-noite e sete.


Hoje, relembrando, já me convenço de que, de fato, minha alma talvez tenha grudado naquele lugar. Tanto que voltei para buscar.


Por volta de 1h, quando o bafo de cachaça já havia refestelado a ceia natalina, Flavinha me ligou à procura de sua tia Tânia, mas eu não tinha a menor idéia de onde ela estava. Na ânsia de chegar pelo menos antes do Papai Noel, cada um correu para um lado - e Tânia, que tinha ido ao banheiro, acabou ficando no bar. Casada há mais de 10 anos com uma mulher, Tânia mora em Guarapari e já se distraiu muito em comunidades hippies. É do tipo que qualquer lugar acima da terra está bom. Quando chegamos em seu “socorro”, ela já tinha até se enturmado e debatia sobre os mistérios do universo com um evangélico solitário. Caiu lá por acaso, quando voltava do culto. E o pobre diabo, que não tinha família para cear, associou-se àquela bonita mulher que se embebedava sozinha em plena noite de Natal num dos recantos mais obscuros da cidade. Àquela altura, o bar estava ainda mais movimentado, mas por um desses milagres natalinos conseguimos ir para casa. E o evangélico acabou indo junto, cear e embebedar-se madrugada adentro. Nunca mais o vimos, e pode ser que esteja a salvo. O evangélico foi mais um que se distraiu e teve a alma lambida pelos tijolos cor de sangue, mas Jesus não há de se chatear com um cara que lembra Dele todo dia.


Definitivamente, no Bar do Estranho, tudo pode acontecer. E olha que, há não muito tempo, até patricinhas passaram a freqüentá-lo – mas há tempo suficiente para inventarem lendas. Certa vez, narram os trôpegos, uma menina de uns 15 anos, vestindo o uniforme do Censa – um dos colégios mais cobiçados por quem cobiça colunas sociais –, teria passado no bar às seis da manhã e tomado um gole de 51. “Dieta!”, informou a cara-de-pau.


Essas e outras histórias, verdadeiras ou não, reúnem-se na comunidade dedicada ao botequim no site de relacionamentos Orkut, que aglomera mais de 400 pessoas em torno de furtivos debates sobre “bebidas, jogos de azar, shows e”, claro, “gente estranha”. E um dos assuntos mais debatidos é justamente o último ítem – o inusitado, quase uma peça decorativa do bar.


Na comunidade, as histórias são despejadas com doses descontroladas de maldade, como fofoca na roça. Sabe-se, por exemplo, do atendente bêbado que não entende porra nenhuma, do professor de dança de agarramento na porta do banheiro com o garanhão da cidade, da bicha velha com mania de dar chupão no pescoço e/ou mamilo dos jovens, do tiozão que estava sentado, bebendo e fumando um baseado numa boa, e até de um infeliz que foi lá e esqueceu a perna postiça. Às vezes, rola até um filme pornô - eu mesmo já vi. Na minha humilde coleção de histórias, há ainda o testemunho – ouvido dos próprios réus – de uma certa noite em que um padre se atracou com dois demoniozinhos desnorteados pelos odores da cidade.


Se é impossível comprovar a veracidade de todas as histórias – e se é que faz-se necessário –, algumas já são de domínio público. Em 4 de outubro de 2007, por exemplo, o jornal Folha da Manhã publicou a notícia do segundo atropelamento em série do motorista Paulo Vitor Lima da Silva, de 20 anos, que invadiu o bar, desabou três pessoas e foi linchado pelos próprios clientes. Foi a segunda vez que aqueles mesmos clientes foram usados como pinos de boliche pelo mesmo motorista no mesmo muro. Segundo a notícia, Paulo Vitor “só parou de apanhar depois que um homem não identificado sacou a arma e deu pelo menos três tiros para o alto”. O jornal ainda diz que uma das vítimas chegou a perder o pé! Nesse caso, com todo o respeito ao lendário botequim, acredito que tenha sido mais erro de digitação do que de apuração do repórter, e o cliente, ao invés do pé, perdeu o pó.


Apurei com três amigos os motivos da interdição do Estranho – sim, o bar não fechou, mas foi fechado. Disseram que aconteceu há uns quatro ou 10 meses. Os depoimentos foram colhidos às três horas da tarde de sábado, quando os três estavam acordando, de ressaca. Logo, a informação pode não ser lá muito precisa, mas por outro lado denota uma certa credibilidade às fontes. Fato é que a interdição foi desencadeada depois que um homem derramou sangue sobre os tijolos malditos.


Dos três depoimentos, o mais detalhado é o de Queiroz, o mais feroz desbravador de bares. Por volta das 7h de um domingo, um homem armado de cervejas quentes adentrou o recinto em busca de outras garrafas, geladas. A atendente se recusou a fazer a troca porque as bebidas não foram compradas lá, e Estranho – o dono – já tinha se recolhido, justo ele que nunca dormia antes de meio-dia. Àquela hora, ainda havia um cliente, escorado no balcão, que meteu o copo onde não devia. Aí aconteceu. O homem enfurecido se desarmou das cervejas, sacou a pistola e atirou no pobre diabo, que provavelmente estava ali só para esquecer da vida. Duas versões ainda ressaltaram que o assassino, depois de atirar, saiu caminhando, tranqüilo, apesar das cervejas quentes na mão.


Quem imaginaria; um homicídio que aconteceu não exatamente porque o assassino tinha bebido, mas porque não conseguiu mais beber. Dois meses depois, as autoridades se deram conta de que um lugar como aquele não podia permanecer aberto, e o Bar do Estranho foi interditado por técnicos da Defesa Civil do município, provavelmente desconfiados daqueles estranhos tijolos. A Arca de Noé naufragou e deixou a cidade inteira empesteada de demoniozinhos desnorteados.


9 comentários:

Rodrigo Rosselini disse...

O Estranho agora funciona no lugar menos provável - não para o nascimento do menino Jesus - para sua existência: às margens da Lagoa de Cima. Tá aí o castigo, deu no que deu... vai ver que essa enchente que fez a lagoa encher e inundar tudo a sua volta é castigo. Quem mandou não respeitar o natal?

Anônimo disse...

Não sou frequentadora desse Bar mas, consigo emitir alguma opinião por morar na vizinhança. Realmente tudo de ESTRANHO tem lá dentro e ocorre lá dentro. Já ouvi falar de inúmeros casos. Ali parece a sede do inverso por inverso. De repente fechou. Se por ordem judicial ou por livre espontânea vontade de seu dono, pelo menos o INTERVALO tem favorecido menos problemas para todos nós.

Anônimo disse...

Mais uma do Estranho: quando a banda Barca do Som, (de Lula Ferreira e Cia) foi tocar num Sábado por lá, veio uma solicitação da Igreja Batista para adiar o show em 1 hora. O motivo era um culto de corpo presente que ainda estaria por terminar! A banda respeitou o pedido. Quando o show começou, vimos o caixão descendo as escadarias da igreja ao som de Led Zep. Entranho, não?

João Ventura disse...

O Estranho não fechou. Implodiu.

Anônimo disse...

E boa parte dos "demoniozinhos desnorteados" estava no Terapia's no sábado. rs!

Anônimo disse...

Que esses demonios queimem nos quintos dos inferno. Junto com esse bar horroroso.
Rita Pessanha

Vitor Menezes disse...

Ótimo texto e ótimas histórias seu Salete. Que isso anime o pessoal indolente daquele projeto dos bares. Abração!

Anônimo disse...

Estive uma única vez no Estranho, num jogo do Brasil na Copa do Mundo, de manhã. A gente se atrasou para sair, o jogo ia começar quando passamos em frente ao bar: eu, meu marido - fanático por futebol - e meu filho,na época com uns 8 anos mais ou menos. Nos respeitaram, não tivemos problemas, mas realmente tinha de tudo. Muita gente virada da noite, ainda bebendo, muita gente estranha... Quando a gente foi embora, meu filho comentou: -Que bar de gente esquisita! E até hoje quando passa por lá ele lembra dos doidões do bar do estranho...

Anônimo disse...

Felipe Sales, você escreve bem melhor do que o João Paulo Arruda...

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