domingo, dezembro 07, 2008

Há pouco de natural na tragédia natural

Há um ar de cinismo na ajuda às vítimas das enchentes em Campos. Não que não seja necessário ajudar. Não que não seja bacana ver a solidariedade surgir em meio ao caos.

Mas esse faz-de-conta de que se está diante de um desastre natural, que não poderia ser evitado, e que agora todas as diferenças e disputas se tornam secundárias frente à necessidade de enfrentar algo maior do que as forças humanas, serve bem ao propósito de encobrir responsabilidades e afagar a carência a ponto de não permitir que ela se rebele.

Sei que alguém que tem a casa invadida pela água não quer ouvir um discurso revolucionário. Quer ajuda mesmo, claro. No entanto, quem está fora da cena não precisa se comportar como se visse na ajuda um fim em si mesmo.

Quantas famílias precisariam morar em áreas de risco se a Prefeitura de Campos, há pelo menos uma década abarrotada dos dinheiros dos royalties, funcionasse em seu dever de planejadora e organizadora da ocupação do solo?

Quanta água escorreria por caminhos naturais se órgãos fiscalizadores atuassem e não permitissem o vale-tudo das fazendas da Baixada e das construções irregulares às margens de rios e lagoas?

Nem tudo é natural na tragédia. Tanto que há bairros da cidade aonde a chegada das águas parece até fazer parte de um ciclo anual.

A mobilização de entidades na ajuda às vítimas também guarda um certo aspecto de compensação pela omissão em outros momentos.

Na maioria dos casos, são as mesmas que não comparecem nas audiências públicas que discutem o orçamento municipal, que não se preocupam com o combate às mazelas urbanas durante todo o ano, e cuidam apenas dos seus interesses, deixando a cidade órfã de cidadania.

E em certa medida são também responsáveis as próprias vítimas, ainda que de forma muitíssimo reduzida e difusa. Por mais coletivizada que seja a vida em sociedade, não seria honesto desconsiderar o peso das escolhas individuais, ainda que dentro de determinados limites.
Seria paternalista, injusto e preconceituoso tratar os atingidos como coitados desprovidos de capacidade de reagir na busca por uma vida melhor.

O que se pode esperar é que da solidariedade momentânea surja algo mais consistente e duradouro. Uma preocupação com a cidade que não passe como chuva de verão.

[Artigo publicado na edição de hoje do Monitor Campista]

7 comentários:

Hilda Helena Raymundo Dias disse...

"É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o misterio profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira

É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho

É um estepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É um pingo pingando, é uma conta, é um ponto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando

É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projecto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama

É um passo, é uma ponte, é uma sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã"

Maycon Bezerra disse...

Parabén Vitor, pelo artigo. Corajoso e necessário neste momento em que se tenta a todo custo jogar para debaixo do tapete as responsabilidades concretas pela tragédia. Um abraço!

Anônimo disse...

calma, professor a sua csndidata foi eleita e logo mudará tudo...

Anônimo disse...

Vitor,
eu acrescentaria a sua lista a falta de estrutura da Defesa civil.Mesmo com todas as intervenções citadas por você nada nos livra de enchentes e chuvas intensas em épocas de aquecimento global,então não seria pedir muito termos um plano de emergência setorizado,caminhões , botes motorizados além de barracas em número suficiente e locais já pré selecionados para servirem de abrigo.Tudo isso somados a estoques de emergência de colchões cobertores e agua.
Não sou especialista na área mas acredito que a estrutura da Defesa civil ainda tem muito o que melhorar e se organizar.
Um abraço.

Anônimo disse...

Faltou citar ainda o promotor que só aparece quando se acendem os holofotes e as câmeras são ligadas. Aonde esteve o ministério público durante estes anos? Dizem que devem ser provocados por denúncias vindas da sociedade. Mas o que se viu foi uma ação digna de um xerife explodindo diques a pretexto de 'salvar famílias'. Acão oportunista e de efeitos limitados e efêmeros.

Anônimo disse...

Rafael, se a sua casa estivesse com água até o pescoço provavelmente você não diria que explodir aquele dique é "uma ação digna de um xerife explodindo diques a pretexto de 'salvar famílias'. Acão oportunista e de efeitos limitados e efêmeros"....digo isso porque a ação gerou resultados, e não é isso que importa?

Concordo com Vítor no que diz respeito ao esquecimento das verdadeiras responsabilidades. Isso ocorre não só em Campos. É o mesmo em Santa Catarina. A mídia se apodera da oportunidade de fazer "campanhas solidárias" que não passam de uma grande masturbação de ego. Ajuda? Sim ajuda. Mas e quanto a outras questões mais relevantes, como a estrutura da Defesa Civil, como disse um comentarista acima? Não se fala nisso. Aliás, não se fala em muita coisa que acontece por aí...

Parabéns pelo artigo Menezes...

Anônimo disse...

Caro Anônimo de 13:11,

O seu próprio discurso já confirma o oportunismo que o Rafael logo acima citou. "se a sua casa estivesse com água até o pescoço..." é argumento passional e contrasta com o teor do artigo do Vitor. A questão é por que não se tomou atitudes preventivas, já que o tal cidadão é uma autoridade e quando convém se comporta como tal. Por exemplo, mandou prender tudo e todos na Expoagro por causa de alguns DVDS piratas. Chamou a imprensa marrom (Os Caolhos), etc. Até aí tudo bem, está cumprindo a lei. Mas será que ele nunca passou ao lado do mercado municipal? Não sabe que lá tem todo o tipo de contrabando? Mas e as ações preventivas para combatê-lo, que mostrarão eficácia a longo prazo? Ah, estas não dão destaque na mídia!

Em resumo, os fins não justificam os meios e um promotor não deveria tomar atitudes como esta sem ordem judicial (com um estudo de impacto), inclusive sendo leviano ao afirmar que o tal dique era ilegal e fora construído por fazendeiros da região.

O artigo do Vitor é excelente mas faltou uma reflexão sobre a ação do Ministério Público.

Abçs,

Mirna Monnerat

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