sexta-feira, outubro 30, 2009

Brasil de Fato publica matéria sobre a morte em queimada de canavial em Campos

O jornal Brasil de Fato publicou, no último dia 26, uma grande reportagem sobre o caso da trabalhadora rural morta em um canavial em chamas, coisa que a imprensa campista não teve a decência de fazer. Segue abaixo a reprodução na íntegra:

Jornal Brasil de Fato, 26 de outubro de 2009


Entre a morte e a escravidão em Campos dos Goytacazes

Trabalhadora morre queimada em plantações de cana e traz à tona recorrência dos trabalhos escravo e degradante no norte do Estado do Rio de Janeiro.

Leandro Uchoas
de Campos dos Goytacazes (RJ)

A imagem enegrecida já não chocava mais. Era natural na altamente poluente fuligem de cana que se apegava a seu corpo todos os dias, desde a infância precoce. Também o foram as mãos carcomidas e o rosto sofrido durante mais de quatro décadas. Mas dessa vez, Cristina Santos havia morrido. Fora engolida pelas chamas das queimadas nos canaviais nos quais ela viveu quase toda a sua vida. O fogo que consome a cana, agride os céus e inferniza o cotidiano dos trabalhadores foi ateado, no distrito de Ponta Grossa dos Fidalgos, em plena luz do dia. A morte de Cristina nada tem de ineditismo, exceto sua revelação. Outros casos se dão com frequência na triste planície de Campos dos Goytacazes, mas raramente tornam-se conhecidos. Essas histórias, como tantas outras da região, parecem saídas dos livros de história do período colonial. Mas não são.

A fatalidade ocorreu no início de outubro, um mês antes de Cristina completar 50 anos. O marido está chegando aos 60, e agora só espera o fim da safra, em dezembro, para se aposentar. Não suportará permanecer. A irmã e companheira ainda está em estado de choque, e não voltou a trabalhar. Os sete filhos perderam aquela que consideravam “o alicerce de sua família”. Tida como uma liderança entre os cortadores de cana, Cristina ocupava há alguns anos a função de encarregada, que é como se chamam os feitores no século XXI. Segundo seus companheiros, era afetuosa e justa, porém rígida. As queimadas que a mataram já estão condenadas em instâncias internacionais há anos. Provocam aumento das concentrações de ozônio e de monóxido de carbono na atmosfera. No Brasil, alega-se que a mudança para uma colheita sem queimadas deve ser gradual, por questões econômicas. É verdade. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc (PT), anunciou no início do ano planos de reduzir as queimadas em 20% até o ano que vem, e 50% até 2014. Em onze anos as eliminaria. Entretanto, o princípio de se queimar apenas à noite, para poupar o trabalhador, é completamente desrespeitado em Campos.

Na cidade há entre 8 e 10 mil trabalhadores da monocultura de cana. Estima-se que pelo menos metade seja “clandestina” - não tem registro nem direitos. A região é fértil em denúncias de trabalho escravo ou degradante. Em julho, foram libertados 280 trabalhadores em condições de escravidão na cidade e redondezas. Entre eles, 22 mulheres e quatro adolescentes, sendo um de 13 anos. “A degradação aumentou nos últimos anos, porque a fiscalização é menor”, diz um dos coordenadores do Comitê Popular de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo que não quis se identificar. Em Campos, as queimadas são apenas um problema pequeno perto de uma realidade que deveria ter sido abandonada nas páginas da história.

Os trabalhadores são roubados em diversos momentos. Saem de casa para o trabalho sem saber quanto vão ganhar. O patrão é quem define o valor da cana, geralmente abaixo do preço justo. Em seguida, pode ser roubado na pesagem, na conversão de valores, e até pelo programa de computador – os patrões chegaram a desenvolver softwares “desonestos” de cálculo. “O trabalhador faz o serviço sem saber quanto vai ganhar. Nem Marx previu tanta exploração”, comenta o mesmo coordenador. Bebe-se água insalubre, come-se comida estragada, mora-se em lugares sujos. Uma amostra da água bebida pelos trabalhadores chegou a apontar 100 vezes o índice máximo aceito de cloroformes fecais.

Clandestino

As doenças mais comuns são muitas. Hipertensão, diabete e alcoolismo são muito comuns. A câimbra, então, é frequente. Há trabalhadores que morrem quando o coração – um músculo – contrai. Só procuram o hospital quando o corpo já está retorcido. Valdeir Teixeira é um desses trabalhadores. Fez hora extra durante uma tarde, e voltou pra casa feliz com os R$ 66,00 que tirou da roça. No outro dia, acordou com os músculos completamente contraídos. Aos 59 anos – mais de 50 na profissão – passou o dia internado. “Cana que vale 15 centavos, eles oferecem oito. Dizem que é porque perderam R$ 8 mil. E quando eles ganham? Dão pra gente?” ironiza Valdeir. Ele trabalhou três anos na usina de Barcelos, pertencente ao Grupo Othon, que fechou as portas em 2008 alegando falência (o grupo Othon tem uma rede de 38 hotéis, duas posadas e dois resorts. As ações do grupo subiram 5% quando, recentemente, foram anunciadas Olimpíadas no Rio em 2016). Além de não ter recebido os últimos pagamentos e o FGTS, agora trabalha como carteira assinada.

Ser clandestino acaba sendo mesmo, em parte, melhor negócio. Ganha-se 40% a mais, em média, do valor. Entretanto, trabalha-se em condições ainda mais degradantes. Trabalhadores são aliciados pelos chamados “gatos” em estados como Bahia, Alagoas, Maranhão, Piauí e Sergipe. Chegam em Campos com a promessa de carteira assinada e boas condições de trabalho. Terminam presos ao trabalho, sem dinheiro para voltar pra casa.

Emanuel é um alagoano que chegou há seis meses na região, com a promessa de ser “fichado”. Terminou prisioneiro do trabalho. O Ministério Público esteve em sua casa, há dois meses, entrevistando moradores e recolhendo provas. Desde então, não voltou mais. “Só consigo dinheiro para comida e aluguel. Se pudesse, voltava pra casa [em Alagoas] hoje mesmo”, diz. Emanuel às vezes se nega a cortar cana por considerar o preço muito injusto. Os alagoanos são considerados bravos na região. Talvez seja apenas um aspecto cultural. Em Campos é comum o trabalhador enxergar a si mesmo como mercadoria. Quem vem de fora nem sempre reproduz esse comportamento.

Conatrae

O tratamento escravagista não coloca as usinas em boas condições de competitividade no setor sucroalcooleiro. “Eles continuam com a postura aristocrática do século XIX, e acabaram perdendo espaço para São Paulo e Minas”, comenta o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Arthur Soffiati. O próximo encontro itinerante da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) está marcado para acontecer em Campos, com a provável presença do secretário de Direitos Humanos do governo federal Paulo Vannucchi. Tripartite – sociedade, estado e empresariado – a Comissão escolheu o município por conta das denúncias recentes de trabalho escravo ou degradante.

No último ano, 4.418 pessoas foram libertadas no território nacional por trabalho escravo. A cultura da cana teve forte aumento em proporção. Em 2003, representava apenas 11,4% dos casos. Em 2008, após as políticas de incentivo ao etanol, ultrapassavam 50%. O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo foi lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003 com o objetivo, na época, de eliminar a prática até 2006. A União Europeia chegou a ameaçar, recentemente, não importar etanol do Brasil se o trabalho escravo não fosse combatido. Segundo o artigo 149 do Código Penal, há condições análogas à escravidão quando a pessoa for submetida a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, seja pelas condições degradantes ou por dívida provocada pelo empregador.

Cidade se caracteriza por conservadorismo e desigualdade

O contraste entre o volume de recursos dos royalties e a precariedade social começa a despertar mobilização e resistência

Talvez seja suficiente lembrar que a cidade é o berço político do casal Anthony e Rosinha Garotinho, e do falecido presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, o “Caixa d'Água”. A história da maior cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro é repleta de tradição, conservadorismo, e fragil mobilização social. “Basta verificar as colunas sociais. São as mesmas famílias há anos”, resume o professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Marcos Pedlowski.

Com 432 mil habitantes, e a maior extensão territorial do Estado, Campos é a sexta cidade mais rica do país. Qualquer um que visita suas ruas duvida do que vê. Ruas sujas, habitações precárias, comércio pouco desenvolvido e transporte sucateado marcam a paisagem a todo momento. Negro e pobre, o povo campista parece não ser beneficiado por um centavo dos R$ 1,4 bilhão do orçamento do município. Se pudesse ser simplesmente distribuído à população, cada habitante receberia R$ 3,2 mil. O valor bilionário se deve aos royalties do petróleo.

A cidade não por acaso foi a última no Brasil a acatar a abolição da escravidão no século XIX. Os ultraconservadores barões da cana, entretanto, enfrentaram uma resistência heroica. José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”, é campista. Com o jornalista Luís Carlos de Lacerda liderava a Sociedade Campista Emancipadora. Nos anos 60, a cidade seria o berço da organização de extrema-direita católica Tradição Família e Propriedade (TFP). Liderada pelo jornalista Plínio Correia, a TFP deu base social ao golpe civil-militar de 1964. O bispo Castro Maia apoiou Plinio até o momento em que o jornalista passou a santificar a própria mãe. Ainda forte na cidade, a TFP tem hoje duas tendências.

Politicamente, parece que toda a institucionalidade campista está interligada. Basicamente, o poder se divide entre os que orbitam em torno de Garotinho e os que começaram a trajetória a seu lado mas mudaram de rumo. Sua esposa e ex-governadora Rosinha é a prefeita da cidade, e com a política de uniformização do preço das passagens de ônibus a R$ 1,00 tende a manter o domínio. A resistência ao poder das oligarquias começou a tomar corpo em 2009. Uma série de assentamentos foi surgindo nas terras do município. Zumbi dos Palmares, Dandara, Che Guevara e Ilha Grande são os principais. Reunindo 18 organizações, o Comitê Popular de Combate e Erradicação do Trabalho Escravo é o movimento mais forte que a cidade já teve. Em 2003, seu primeiro ano, conseguiram importantes vitórias. Entretanto, sofrem com a invisibilidade e a força institucional das tradições medievais.

Um escravocrata amigo de presidente

Um nome se destaca entre os empresários do setor sucroalcooleiro. O presidente da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool, José Pessoa de Queiroz Bisneto, é a quarta geração de uma família que se construiu com a exploração da monocultura da cana. Além do Estado do Rio, tem plantações em São Paulo, Mato Grosso e Sergipe. Suas empresas tem a capacidade de moer mais de 8 milhões de toneladas de cana por ano (a título de comparação, a safra no Estado do Rio, este ano, deve ser próxima desse valor). “É o grande escravocrata hoje”, define Pedlowski. Em 2004, deu R$ 1,2 milhão à Salgueiro, que levava à passarela do samba o enredo “A cana que aqui se planta tudo dá, até energia... Álcool, o combustível do futuro”. A música satanizava o petróleo, alavancando a imagem do álcool. J. Pessoa, como é conhecido, chegou a ser cogitado a ministro do governo Lula, de quem é bastante próximo.

4 comentários:

Millena Lízia disse...

Parafraseando a outra: Campos minha cidade, que horror!

Millena Lízia disse...

Ou melhor, parodiando...

Anônimo disse...

se kafka passasse por aqui não teria escrito livro nenhum e ainda daria um tiro na boca

Patrícia Bueno disse...

Excelente texto e, infelizmente, real.

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