Leandro de Souza tem seis anos. O observo de longe. Ele leva prato e talheres para lavar em um tanque instalado a céu aberto. Primeiro, joga os restos de comida em um recipiente grande, para que sejam reaproveitados na alimentação dos animais. Depois, passa sabão com zelo, enxágua e põe para secar. Quem leu este espaço na semana passada sabe que falo, ainda, do cotidiano no Assentamento do Contestado, na cidade de Lapa (PR), que, por conta de obrigações profissionais, estive entre 2 e 5 de julho.
No refeitório, alguém me conta que ofereceu um pedaço de carne do seu prato para uma criança, que já havia acabado de almoçar. Ouviu como resposta: “Não, obrigado, só podemos comer um pedaço de cada vez”.
Em outro momento, perto dali, um grupo de garotos e garotas fazem rodinha de violão típica de um campus de universidade. Alguns deles compõem a banda que misturou forró, música típica gaúcha, baião, rock e até valsa na noite anterior. São alunos do curso superior do lugar, a Escola Latino Americana de Agroecologia.
Eles são selecionados entre militantes de movimentos sociais. Para entrar, tem que estar ligado à terra ou à luta por ela. Não é um curso qualquer. É comum que filhos de outros assentamentos venham nela estudar. E o vínculo é mantido por meio de um sistema de períodos que prevê o revezamento de seis meses de aulas, morando no Contestado, com seis meses de “folga”, para atuar na sua comunidade de origem.
O objetivo é o de que o aluno não se esqueça de onde veio e qual o seu papel. Política não se separa de ensino que não se separa de trabalho. Os futuros formados em agroecologia não têm como prioridade virar profissionais liberais, montar escritórios, prestar consultorias, fazer concurso para uma Emater. Nos seus horizontes estão continuar com a militância e prestar serviço voluntário em lugares onde são necessários.
No forró, às 23h30, o cantor interrompe a sequencia de músicas para dar um aviso: “atenção pessoal do assentamento: à meia noite o ônibus vai sair”. E não há discussão. À meia noite o ônibus chega e leva todo mundo do lugar, deixando o privilégio da sanfona madrugada afora apenas para os visitantes.
E nesta mesma madrugada, enquanto uns dançam e outros retornam para suas casas, num raio de 10 km da sede da escola, há os que já estão na cozinha industrial, preparando o café da manhã e o almoço seguintes. Dentro de instantes, no campo, ao nascer do sol tímido em meio à neblina, e sob temperaturas sempre abaixo dos 10 graus, haverá ainda os que estarão na lida da lavoura e da criação.
Estes são exemplos de uma disciplina difícil de assimilar por quem vive o individualismo das cidades. É um comunitarismo com aspectos religiosos – inclusive com “místicas” e músicas próprias, algumas bem semelhantes ao gospel – que parece pesado de suportar. Por outro lado, tudo o que construíram não seria possível se não fosse assim. A mesma mão coletiva e invisível que conduz é a que ampara e transforma.
[Artigo publicado hoje no Monitor Campista]
domingo, julho 12, 2009
O que faltou contar
Postado por Vitor Menezes às 10:07 Marcadores: contestado, Gaveta do Povo, mst
Um comentário:
A disciplina foi uma das coisas que mais me impressionou.
Foi realmente impossível não me sentir "meio" mediocre ao lembrar das reclamações diárias que faço sobre a rotina e dos "sacrificios" de viver em uma cidade grande.
Acho que você conseguiu sintetizar tudo com as últimas frases do artigo!
Parabéns!
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