Dia desses, vi um anjo. Era um sujeito atormentado, que caminhava passos nervosos à beira mar, e que fixou seus olhos em mim durante alguns segundos de profunda inquirição. Numa praia de pequena extensão, zanzava de uma ponta à outra sob pretexto de fazer uma atividade física. Mas era possível perceber que não era bem isso o que fazia.
Ele caminhava para fugir de si mesmo. Mas andava tão rápido quanto ele próprio e os dois ou mais que nele habitam não se separavam. E então balançava os braços, remexia a cabeça, e mantinha firme a marcha da impossível retirada.
Era alto e parecia estar naquela idade indefinível entre os 50 e os 60 anos. Tinha trejeitos de militar reformado. Com boné, sunga desbotada com um chaveiro pendurado, estava determinado em sua missão de caminhante de praia. Lembrava um nadador cumprindo rapidamente o trajeto de uma a outra borda da piscina.
Mas o que fazia dele um anjo era o detalhe de que, em sua caminhada, abaixava-se zelosamente para recolher da areia todos os pontiagudos palitos de churrasco que os demais humanos, supostamente normais, deixavam. Reunia a todos e, numa ponta do percurso, atirava-os ao lixo.
Isso fazia todo o sentido para ele. E para mim, que o assistia, também. Quantas crianças não terão escapado de cortes profundos? Quantas famílias não terão voltado para casa sem saber que tiveram um dia agradável ao sol e ao mar, sem que nada de mal tivesse acontecido, somente porque um obstinado anônimo conservava a estranha mania de recolher os palitos ameaçadores da praia?
Mesmo assim não deixei de me assustar quando ele me encarou. Logo me veio a idéia de que um maluco reconhece o outro. Eram olhos grandes e verdes que pareciam fatais contra uma alma vulnerável.
Tenho um medo infantil dessas figuras. Um certo pânico de que elas possam se aproximar e vociferar todas as verdades que você teme conhecer, ou fazer acusações, ou querer briga, ou tudo isso junto.
Mantive-me firme, e ele se foi, mas não foi fácil.
O escritor Campos de Carvalho, que desenvolveu por meio do personagem Pernacchio a teoria de que a torre de Pisa não está inclinada, mas sim toda a cidade que, em volta, lentamente afunda, disse certa vez que só é louco quem não é. Para ele, “quem nunca sonhou em ser louco já nasceu morto e não merece nenhum milagre de ressurreição”.
De modo que faço uma homenagem ao anjo que encontrei ao qualificá-lo como louco. Embora o faça covardemente distante dos seus grandes olhos. É que, como é comum, é possível que ele não tenha consciência da própria loucura. E eu não gostaria de estar por perto quando lhe fosse apresentado o diagnóstico.
[Artigo publicado na edição de hoje do Monitor Campista]
domingo, janeiro 04, 2009
O anjo louco da praia
Postado por Vitor Menezes às 10:09 Marcadores: cotidiano, crônica, Gaveta do Povo, monitor campista
2 comentários:
Vitor, quanta ternura em seu texto!!! Quanta belezura em seus caminhos ali na praia de "loucos por perto..."
De certo sua loucura foi denunciada aqui. Só loucos param para avaliar a loucura de anjos ...
Só ternos loucos se sabem desejosos de não o serem.
Seu texto me deixou louca!
Louca para ver os "certinhos" cuidando mais do seu ambiente, nem que seja aprendendo com os loucos...
Não, você não é louco, você é um anjo...
Queria mais textos assim aqui nos bloggs... fazem bem... e nos levam a catarzes alucinantes...hehehehehe
Já dizia Caetano Veloso, "de perto, ninguém é ne novo normal", por isso, nada de novo no front, alguns, assim como eu também, têm uma espécie de bússola, um imã que atrai os iguais, os não normais, os anjos tortos da vida. Eu, particularmente, tenho uma teoria que explica e ao mesmo tempo, não diz coisa nenhuma: Acho que somos produtos de uma imaginação tão forte mas, tão forte, que imagina que nós existimos, quando somos apenas fruto dessa imaginação. À propósito, também concordo que que a Torre de Pisa está alinhada e o resto do mundo é que está torto.
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