terça-feira, junho 22, 2004

Arrume sua casa para receber o céu
Não é minha intenção chamá-la de benhê, mô e bizarrices lóvistori congêneres. A sintonia é tão tanta que ela me escreveu, antes mesmo que eu pudesse colocar esta idéia impressa, pedindo para que nunca recorresse a clichês do gênero. Descanse, eu disse, conhecedor de que sempre existi mais do que probabilidade. Já estamos fora dos padrões, convenções e repetições de modos há algum tempinho. Aí estão o bebê predestinado e essa saudade pistoleira que não me deixam mentir.
E é justamente atingido por estas balas de prata que me pego olhando pra dentro de mim mesmo. Todos meus sentidos em riste apontam minhas memórias. E lá está ela, me perguntando “que ?” a cada vez que me pega olhando fixamente para o modo como anda, como fala, como age. E, a cada vez que isso acontece, aquele sotaque escancara todas as terminações nervosas dos ouvidos e vai bater bem lá dentro desta minha combalida caixa toráxica. Daí que sou abatido, por dentro, por aquele sotaque que, anunciando que seremos todos mais felizes, andou ecoando pelos cômodos desta casa. Especialmente no quarto, em momentos de animadas conversas sobre apreços, pontuando nossos desejos. Um sotaque que fazia a diferença, mesmo quando estávamos em silêncio.
E o que dizer do jogo de busca pelas minúcias ? Haveria pudores em falar das sacanagenzinhas ensejadas e praticadas na surdina ? Talvez eu devesse falar da mão no meu queixo, um gesto quase ninja, como a pedir para que eu ficasse quieto ? Ou das imagens em vídeo que ela trouxe de suas entrevistas, especialmente aquela imagem que ficou parecendo cena filmada pelo Bertolucci e me fez abraça-la ainda mais forte ? Poderia ser igualmente marcante o momento em que ouvimos novamente uma música do Cordel do Fogo Encantado, lembrando do primeiro show que assistimos juntos ?
Ou quem, sabe, seja melhor sintetizar. Tratamos aqui de um jogo sensorial de reconhecimento, que inclui uma toalha molhada jogada na cama: única reclamação que acabei deixando escapar. Ela me disse que teve medo em bagunçar minha casa funcional, devido às marcas de método visíveis por todo o lugar. Bullshit, eu pensei, mas não disse. Acabei dizendo que, somente agora, com trinta anos, é que fui entender o que é saudade.
São mostras de uma estratégia de sintonia fina, como não canso de dizer, azeitadas por descobertas cotidianas de duas pessoas que gostam de trabalhar com silêncios. Como o silêncio que um mantinha enquanto vigiava/pesquisava o modo como o outro dorme. Uma brincadeira de gato e rato que praticaremos com nosso bebê, ensinando-o como pode ser fascinante e estimulante o processo de viver juntos. Uma lição reforçada com os carinhos aprendidos. Carinhos tão necessários para nós dois, como passar óleo em sua barriga, espalhando perfume de amêndoas no que é habitat natural para nosso bebê.
Já disse: todos meus sentidos ficam em riste diante dela. Por isso, bateu mais forte o cheiro de amêndoa estampado em meus dedos, enquanto o ônibus partia em direção de Belo Horizonte. E este cheiro me conectou ao momento em que ela abraçou meus pais quando se despediu, ouvindo deles que apostam que me fará feliz.
Naquela noite, me permiti, talvez pela primeira vez, sonhar com o futuro.



[Escrevi este texto logo depois que Ana Elisa Ribeiro voltou para Belo Horizonte, depois de passar o Ano Novo comigo, aqui nesta terra plana. Apenas duas ou três pessoas, incluindo Ana, conheciam este texto, que não é minha forma habitual de escrever. Relutei muito em publica-lo neste blog, mas considero que este é um momento propício.]

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