Um pouco dramática
Vitor Menezes
Desde a noite em que tentou cortar os pulsos, Mariângela mantém-se trancada no quarto. A quantidade de sangue que escorre do corte não parece suficiente para matá-la. Mas mesmo assim ela curte a iminência da morte, fixando no espelho um olhar autocondescendente que só os mártires sabem ter.
Como um novo Jesus, ela espera purgar todo o mal que há na Terra.
Seus movimentos mais intensos são os que faz para abrir uma gaveta no aparador, de onde retira pilhas usadas para testar no MP3, até encontrar alguma que lhe permita ouvir mais algumas doses de Billie Holiday.
O cenário que a envolve é formado por lençóis sujos de vômito da ressaca de vinho barato que antecedeu a tentativa de suicídio. Travesseiros sem fronha, guarda-roupa revirado, pôsteres rasgados que se misturam a outros pedaços de papel largados pelo chão. Livros, CDs, garrafas vazias. Ventilador de teto em velocidade morbidamente lenta. Fios aparentes nas tomadas. Paredes emboloradas.
O computador, ligado permanentemente, está superaquecido e travado. Uma tela adverte para a necessidade de ser reiniciado. Ela não o fará.
Mariângela está estirada de calcinha, a mesma por dias. Sua menstruação está próxima e nada indica que isso de algum modo mudará seu trato com a higiene pessoal. Ao contrário: ela está cada vez mais irritada.
Um insensível poderia perguntar a razão para tamanho mergulho no submundo de um quarto infernal. E a resposta, se tivesse alguém por perto para ouvir, ela, após acender um cigarro, daria sem constrangimento. É que uma barata atravessou a sala do seu apartamento. E ela odeia baratas.
segunda-feira, fevereiro 28, 2011
[croniquinha de segunda]
Postado por Vitor Menezes às 13:50 Marcadores: croniquinha de segunda
5 comentários:
Uau!
Surpreendente.
Gostei!
0/
Dá-lhe Vítor!
"Mariângela está estirada de calcinha, a mesma por dias".
Esse trecho da narrativa me provocou uma ereção imediata. E das mais rijas. A anterior, com o mesmo vigor, deve ter ocorrido há mais de 10 anos.
Obrigado, Vitor!
Nossa Vitor, valeu a pena voltar a visitar o Urgente. Que crônica boa! Este seu ritmo caótico sempre foi um dos meus preferidos. =o]
*E por um momento o Terra Plana me vem a memória, saudoso como só.
Voltemos ao Terra Plana, pois! O que falta!
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