domingo, dezembro 28, 2003

Um conto de Ano Novo [De Novo ?]
Eis aí minha contribuição literária para o final de 2003. Com a devida ilustração do caro amigo Löis Lancaster, da banda Zumbi do Mato e mantenedor do fotolog Roncevaux, onde armazena suas "pinturas". Confira a ilustração aqui.

Cusparada: 3112

I hurt myself today
to see if I still feel
I focus on the pain
the only thing that's real
Hurt - Nine Inch Nails [versão de Johnny Cash]



Uma cusparada. Foi o primeiro som que ouvi, tão logo acabei de nascer. Justo na passagem da meia noite. Meu batismo orgânico. Até hoje me pergunto quem foi o autor daquela escarrada que trago na memória como recuerdo ancestral. Nascido na margem esquerda do rio, num local onde nada, nada muda, fui condenado – por quem ?, eu também me pergunto – a andar munido de um tamborzinho. Que uso para marcar minha passagem pela planície. Minha passagem pelo tempo e pelo espaço - hah, vão perdoando a verve de piadista, mas esta é inevitável, nestas condições.
Tá-tará-tará-tim-bum. E dá-lhe aleluia e auto-flagelação.
Hoje é dia de festa. Fico mais velho com o resto do mundo. Eu, todo de branco, marco o compasso da passagem cronológica por avenidas esquecidas da margem esquerda. Cantando um lamento negro cujo refrão recita onde estou me faltam asas e a solidão é sanguinária. Os mentirosos se espreguiçam nas poltronas e os dementes lançam pipocos para a lua – mesmo que ela não esteja lá. É nesse ambiente que surge a limusine branca que estanca na minha frente. Tamborzinho finaliza o que estava repicando. De lá de dentro, uma janela vai descendo e uma mulher de longos cabelos negros me encara. Cheirando a champanhe e maçãs frescas.
- Eu sou Saudade. E vim para cumprir expiação.
De imediato, ela sai do carro, empunhando uma pistola semi-automática, como se planasse acima dos desejos de restos mortais. O que primeiro me chama a atenção é que Saudade usa uma camiseta onde se vê estampado o cadáver encarquilhado de Che Guevara. Depois, ela aponta para um bolo de bosta entre nós dois. Acabei de lembrar que, justamente no dia do meu nascimento, arrombaram a minha casa e de lá levaram a privada. Olhos grudados nas fezes. Saudade, sem conseguir disfarçar o tremor nas mãos que seguram a pistola semi-automática, dá o comando: come.
Eu obedeço. Sem desgarrar do tamborzinho.
Estendo minhas mãos no chão e mancho a terra de vermelho vivo. Minhas mãos carregam chagas. De tanto marcar o compasso. A pistola semi-automática cai das mãos de Saudade como escamas nos olhos e é rechaçada no chão. Ela me estende a mão, como penitência, e eu confirmo a redenção.
- Eu sou o Santo.
os sinos badalam e eu convulsiono. apertando a santa mãozinha. desejando que suas unhas rasguem minha carne de segunda.
- Me dá o teu perdão.
- Ajoelha e chora, filha. Porque é chegada a hora de comemorar a passagem.
Fogos de artifício estouram na hora precisa, lembrando o brilho crispado da batalha no céu. Saudade se transubstancia em imagem sacra de mosaico e me beija a boca suja. Com volúpia, vontade e desejo. A língua toda lá dentro, fisgando minhas cáries e obturações. Penso em ampulhetas e a química corporal faz o resto. Eu choro através das marcas de estilete e aparelhos de barbear.
Para ela. Por toda a eternidade. Essas asas de moscas.
Tamborzinho volta a repicar. Mas ninguém ouve

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