Mais um
O calor dessa cidade está derretendo os meus miolos e não estou com a mínima vontade de escrever um conto de final de ano para o urgente!. Para que o conselho editorial não me demita, vou apelar: segue aí um conto de virada de ano que publiquei, nos distantes idos de dezembro de 2001, numa coluna que tinha na Folha da Manhã. Abraços e até 2004.
Conto de Ano Novo
Encostou no parapeito do terraço e encheu os pulmões com o ar da noite. Decidira passar a virada do ano sozinho, no ponto mais alto da cidade. Queria, por um instante, acreditar que toda aquela mobilização festiva em torno de um calendário lhe era indiferente. Ou, para ser preciso, fazer uma festa particular, com som portátil, um whisky ordinário e charutos de procedência duvidosa. Tudo compatível com a remuneração de bancário — até a cadeira de praia, que só contribuiu para tornar a cena mais ridícula.
Às 23 horas estava ali o nosso personagem, ao lado de uma enorme caixa d’água, sob dezenas de antenas parabólicas, em meio a cabos e canos, segurando a haste do pára-raios. Nem as estrelas apareceram. O céu nublado lhe prestava a reverência de quem respeita um momento de solidão.
Sentiu-se bem. Ou sentiu-se como queria: enfim fazendo algo que acreditava ser de sua genuína vontade. Sem chefe, sem família, sem amigos. Estava experimentando, aos 40 anos de idade, a liberdade de não prestar-se à diplomacia ou à obediência.
Durante toda a vida não fez outra coisa senão pautar-se pelo normal. Estudou para trabalhar e vinha trabalhando para ser alguém digno de ganhar um brinde do banco no final do ano. Seus maiores orgulhos eram, respectivamente, o fato de ter sido, aos 22 anos, o mais novo bancário a receber o prêmio corporativo de atendimento ao cliente; trabalhar na maior instituição financeira do país; e de ter dois filhos.
Pagava há 14 anos a prestação do apartamento. O carro, pelo qual pagou o preço de dois, também fora financiado. A esposa, uma estudante de fisioterapia, consumia o seu 13º salário em mensalidades atrasadas na faculdade. E as outras contas, que se avolumavam numa escrivaninha, iam sendo pagas aos galopes e a poder de empréstimos.
Mas não era financeiro o seu maior problema. O que não compreendia era como, depois de ter feito tudo certo, poderia ter dado tão errado. Não que fosse um retumbante fracasso. Não, não era isso. O inquietante é que não sabia o que saborear no seu sucesso de cidadão exemplar. Afinal de contas, tinha e era o que, supunha, milhões gostariam de ter e ser. Chegou aonde achou que poderia chegar. Só não entendeu o que estava fazendo naquele pódio ilusório.
No alto daquele prédio estava alguém que se permitia manter-se em interrogação, após uma existência cercada por certezas. E isto o assustou. Assustaria a qualquer um. Depois de terminada a garrafa, estouraram os fogos do ano novo. Ele percebeu a força daquele momento e lamentou não estar em casa. Era tarde demais. O momento clamava por alguma comemoração e ele estava só.
Andou entre os cabos, desviou das antenas, olhou a cidade e não soube mais o que fazer. Apenas se atirou.
segunda-feira, dezembro 29, 2003
Postado por Vitor Menezes às 14:33
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