domingo, setembro 19, 2004

O império se expande
Saiu a primeira resenha deste que vos escreve sobre Encarniçado, livro do malacomano João Filho, no Prosa & Verso de ontem. Leia aqui. Eis aó o texto editado.

ENCARNIÇADO, NO ALTO SERTÃO, PELA BOA LITERATURA
Contos crus e fortes de João Filho, um autodidata da Bahia

Encarniçado, de João Filho. Editora Baleia, 148 pgs. R$25

Ao terminar a leitura de “Encarniçado”, livro de estréia do prosador e poeta baiano João Filho, a primeira impressão é a de que acabamos de entrar em contato com uma “estética do perrengue”. Para tentar entender essa classificação, é preciso, antes de tudo, conhecer um pouco da história do escritor, herdeiro literário de Antonio Fraga e João Antonio. Encalacrado em Bom Jesus da Lapa, alto sertão da Bahia, João Filho passou a maior parte de seus quase 30 anos atrás do balcão do armazém de seu pai, alternando os momentos de carregar pesadas mercadorias com a leitura dos clássicos da literatura. Autodidata, aprendeu a apurar e dar tratos literários à vivência da escória local, sendo tão duro quanto a terra árida onde habita.

A lição de vida foi bem aprendida, exatamente como mostra a publicação da Baleia, que lançou também “Mal pela raiz”, de Jorge Cardoso — que João Filho considera uma das pontas do tridente, junto com ele e Nilo de Oliveira, que terá um livro publicado pela mesma editora (a qual periga se especializar na dita “literatura tarja preta”, haja vista seu time de autores).

Preocupação com a arquitetura dos contos

Com “Encarniçado”, João Filho mostra a sagacidade de sua recriação estilística, desdobrando gírias, reinventando frases e estabelecendo uma grafia própria, sui generis. Principalmente para marcar a diferença no modus vivendi dos personagens, que, assim como ele, são aquilo que o sertão manda.

O trecho em que apresenta uma dessas personagens, Nandoneguim, evidencia essa marca de cataclismo: “na barca nu. pingente é pouco e nada deflagra de Nandoneguim. inda pelos treze uma fissura só por’onde calanguea-se: mercados, biroscas, bregas, bibliotecas, videotecas, catava algum. seu conceito: tudo é gratuito, a propriedade é paga”.

É possível perceber, em João Filho, a preocupação constante com a arquitetura dos contos, principalmente em relação às referências que entrecruza no texto, com o cuidado de ferir, a golpes de escrita-peixeira, a mediocridade. Em “Tríade Sãta”, o autor, inspirado em uma aventura com a invocação de três demônios, cita Glauco Mattoso, Roberto Piva e o argentino Néstor Perlongher, “vertiginoso”, na opinião dele.

Crueza narrativa e foco sanguinolento

Outras mostras do alcance do corte desta escrita afiada são “Na Carmela” e “No Municipal”. João Filho escreve contos terríveis — no sentido mais assustador do termo — nos quais ele estabelece uma ligação firme de sua natural crueza narrativa com um foco sanguinolento e escatológico — com exageros calculados, é bom frisar. O escritor baiano surpreende e mostra ter pleno domínio de sua literatura.

“Encarniçado” não é propício a uma leitura fast food, mas, sim, vem se juntar a uma leva representativa de trabalhos de escritores que primam por planejar e dar dimensão abalizada à estrutura narrativa. Fiquemos incomodados então: a saga desse baiano do alto sertão só está, por enquanto, em seu primeiro capítulo.

JORGE ROCHA é jornalista e escritor

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