Pânico no ar
Álvaro Marcos
"Boa tarde, amigo ouvinte. Abrem-se as cortinas para mais um espetáculo esportivo em Pinduinha. Os senhores vão acompanhar o confronto entre o Nacional e o Jangadense, pela terceira divisão do campeonato Tancredista. Conosco o comentarista Sávio Amazonino. Ele faz a melhor análise do rádio brasileiro. Os repórteres Armando Zanoto e Luís José Salviano vem daqui a pouco com todos os detalhes dos clubes. A jornada começa agora com o oferecimento da cerveja Balza, o puro malte; das Casas Espíndola, tudo em eletrodomésticos; da loteria do Janjão, onde sua aposta vale ouro; e do restaurante Carne na pedra, o mais gostoso da cidade".
O vozeirão não deixava dúvidas: Fred Scapelloto estava no ar. Como em todas as tardes de domingo, a rádio Pinduinha ecoava nas ruas, carros e casas das redondezas. São oito municípios da serra de Tancredo (novo estado criado pela União) acompanhando par e passo a competição estadual narrada pelo mais famoso locutor da região, funcionário aposentado do banco do governo, que empunha microfones desde adolescente. Mas este não seria um fim de semana comum. Pelo menos para a família e amigos do "trepidante". Como costumava fazer, chegou ao estádio com três horas de antecedência. Mal sabia o que o esperava.
Filho caçula, Alexandre desapareceu logo após o almoço na casa da avó. Foi à calçada colocar a moto para dentro da garagem lateral e não voltou. À princípio especulou-se que havia saído para encontrar a namorada, mas a hipótese acabou descartada após ligação de Flávia para a matriarca da família de descendentes italianos. O celular chamou até cair a ligação. Nada de alguém atender. Foi assim até o início da noite. Por volta de cinco e meia, de tanto insistir, dona Marluce consegue ouvir uma voz do outro lado da linha. Alguém rouco, informando que o rapaz não voltaria antes do pagamento de um resgate de trezentos mil dólares em dinheiro.
"E lá vai Sabino. Recebe na direita, tenta passar pelo lateral e a bola sai pela linha de fundo. É escanteio. Canhotinho vai jogar na área, Zanoto!" "É verdade, Fred. Ele treinou durante toda a semana. O zagueiro Orelhão vai tentar a cabeçada. Vem ela aí, Scapelloto". "Canhotinho cobra, a zaga rebate, Toinho bate e é gol. Gooooooooooolaço do Nacional. Toinho, camiza dez, aos quinze minutos do segundo tempo. Vibra a torcida azul. Agora no placar: Nacional, dois; Jangadense, um. Zanoto!". "Ele veio na corria, nem deixou a bola quicar e chutou de primeira, no canto do goleiro Anselminho. É o décimo gol de Toinho, artilheiro da competição".
Enquanto Amazonino comentava o lance, tremeu o telefone de Fred, colocado no bolso esquerdo da calça. Os sequestradores exigiram a recompensa sem mais delongas. Atônito, o radialista não soube o que fazer. Não dispunha de tal quantia. Fez sinal com a mão direita para Sávio esticar falatório. O próprio Alexandre indicou a senha de concordância: ele deveria ler, três vezes seguidas, o anúncio da Balza. Assim foi feito. Como uma mágica, Fred Scapelloto pegou um binóculos jogado na cabine e enxergou o pimpolho no meio da arquibancada. Engasgou e atirou longe o enorme fone de ouvidos que usava há mais de uma década.
Copo ao alcance. Duas, três goladas. Suficiente para acelerar o ronco. Novamente sonhos confusos. Filho sorrindo, caneta falhando, mulheres reclamando, time perdendo, trabalho escravizando, gente chantageando... Teve de tudo um pouco. Eram rompantes, delírios quase verdadeiros de realidade clara, absoluta, eminente e absurda. Mistura de formas e rostos, vertentes e mentiras. Mistério, por assim dizer.
segunda-feira, agosto 26, 2013
[croniquinha de segunda]
Postado por Álvaro Marcos Teles às 11:59 Marcadores: croniquinha de segunda
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